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O milagre da mata atlântica
"Regeneração da floresta" é dádiva para os ímpios desconfiarem
S
abiá-do-campo, tesourinha, canário-da-terra, bem-te-vi, quero-quero, gralha-azul, curicaca,
pica-pau-do-campo, andorinha, anu-branco... Bastam poucos dias na serra
catarinense para topar com dezenas
de espécies de pássaros. A maioria,
porém, inidentificáveis por urbanóides desprovidos de um guia de aves.
Não tem problema. Nem sempre é
imprescindível saber o nome para conhecer. Quando alguém dispõe de
muitas horas para caminhar entre milhares de araucárias com galhos cobertos de liquens, um par de binóculos é mais que suficiente.
Se a ansiedade classificatória bater,
um mergulho no rio Canoas resolve.
Esfria a cabeça de qualquer um. Na
água, dificilmente será necessário um
giro de 360 graus para dar com uma
bromélia em flor encarrapitada numa
araucária qualquer.
Eis o verdadeiro milagre da mata
atlântica -no caso, a mista. Também
chamada de mata de araucárias, ou
"mata negra" (pelo contraste do sombrio pinheiro brasileiro contra o fundo das outras árvores), a floresta catarinense encanta.
Compensa, com sobras, todos os suplícios rodoviários para alcançar Urubici (SC). E, depois, para cobrir os 30
km de terra e pedras soltas até o refúgio de Gisele e Juan no sopé da serra
do Corvo Branco. Quem sabe, mesmo,
arrastar-se entre bambus até a borda
escarpada, basalto sobre arenito vermelho, no primeiro dia do ano.
Campos de altitude, horizontes e
luz. Feliz 2007.
De volta à pousada na beira do Canoas, dá até para pensar em ler alguma coisa. Como as notícias de 12 dias
antes, no crepúsculo do primeiro governo Lula, sobre a finalização dos levantamentos e remanescentes florestais nos seis biomas brasileiros: mata
atlântica, Amazônia, cerrado, caatinga, Pantanal e Pampa.
Nada de muito novo, além do "tour-de-force". Pantanal e Amazônia ainda
são os biomas mais preservados. Mantêm 88,7% e 85%, respectivamente, da
cobertura vegetal nativa preservada.
A devastação do Pampa (58,7% detonados), do cerrado (38,9%) e da caatinga (37,4%) ganha, enfim, números
oficiais. Cifras menos horrendas que a
de estimativas anteriores, menos
abrangentes e generosas nos critérios.
Por encomenda do Ministério do
Meio Ambiente (MMA), a vegetação
secundária (matas rebrotadas) em estágio avançado foi agora computada
como remanescente florestal.
O emprego desse critério compõe
também a explicação oficial para a
grande surpresa do levantamento: segundo o mapeamento coordenado por
Carla Madureira Cruz (UFRJ), Raúl
Sánchez Vicens (UFF) e Marcelo
Araújo do Iesb (Instituto de Estudos
Socioambientais do Sul da Bahia),
27,4% da mata atlântica estão de pé.
Se for aceito como fato, é outro milagre. Até o presente, o número mais
citado despencava a um quarto disso.
Segundo o "Atlas dos Remanescentes
Florestais da Mata Atlântica", da Fundação SOS Mata Atlântica (2006), restam cerca de 7% da floresta ombrófila
(chuvosa) densa que portugueses e
outros europeus encontraram e dizimaram na costa brasileira.
Além do conceito de remanescentes
adotado, os autores do trabalho encomendado pelo MMA explicam a discrepância também pelo uso de escalas
de mapeamento diversas e pela inclusão de manchas florestadas de cerrado
e caatinga. Ainda assim, a diferença
entre os números dá o que pensar.
Sair de 2006 com 93% de mata
atlântica devastados e entrar em 2007
com quase um terço florestado constitui dádiva bastante para até os ímpios
desconfiarem, além dos santos. Que o
digam os especialistas.
MARCELO LEITE é doutor em Ciências Sociais pela Unicamp, autor do livro paradidático "Pantanal, Mosaico das
Águas" (Editora Ática) e responsável pelo blog Ciência em
Dia (www.cienciaemdia.zip.net).
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br
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