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Ciência em Dia
Em defesa das biotecnologias
Marcelo Leite
editor de Ciência
Não foi decerto só uma coincidência
que a revista especializada "Science" tenha publicado no dia 20 um artigo
em defesa das biotecnologias na medicina, do bioeticista americano Arthur Caplan, só um dia depois de começar a circular a edição da mais popular "New
Scientist" com o texto do escocês Ian
Wilmut em defesa da clonagem humana,
comentado aqui na semana passada. Parece que a ficha está começando a cair.
Caplan abre o artigo com um título interrogativo ("A Pesquisa Biomédica É
Perigosa Demais para Ser Levada à Frente?"), mas sua intenção óbvia é despachá-la com um sonoro "não". E olhe que
o diretor do Centro de Bioética da Universidade da Pensilvânia (EUA) nem é
um desses fundamentalistas da linha
"pau na máquina", para os quais toda e
qualquer linha de pesquisa e experimentação é por princípio válida e justificável.
Ao contrário, ele já escreveu coisas bem
críticas sobre a "hybris" tecnocientífica.
Acontece que Caplan sentiu o cheiro
da brilhantina conservadora no ar e resolveu reagir. Com efeito, ele reúne entre
as referências do artigo pelo menos dois
pensadores ideologicamente muito próximos do governo George W. Bush, Leon
Kass e Francis Fukuyama. O primeiro
preside a Comissão de Bioética montada
por encomenda de Bush, e o segundo faz
parte dela a convite de Kass.
Ambos têm escrito extensivamente sobre os riscos que as maquinações das
biotecnologias na medicina supostamente trariam à natureza humana, pela
modificação de sua base biológica (com
clonagem, certas técnicas de reprodução
assistida, modulação do comportamento por remédios e genética e por aí vai).
Caplan diz que essas alegações não são
muito convincentes. Afirma, com propriedade: "A própria natureza humana
tem mudado drasticamente em reação à
tecnologia". E mais: "Tampouco há razão para glorificar uma fase particular da
evolução da natureza humana e declará-la sacrossanta".
Ele está certo, como ficou dito aqui em
15 de dezembro de 2002 a respeito de um
livro de Fukuyama, "Nosso Futuro Pós-Humano". Uma natureza humana una e
imutável constitui artigo de fé e, em geral, estabelece uma confusão entre fato
(supostamente determinado pela biologia) e norma (aquilo que se pretende ver
obedecido). É o que já se chamou, há
tempos, de falácia naturalista.
Já menos tranqüila de aceitar é a tese de
Caplan de que o único norte a ter em vista na pesquisa biomédica é o da bússola
utilitarista, de largo uso em sua pátria
-que é também a pátria do pragmatismo. Decerto ela ajuda, tomando em conta exclusivamente riscos e benefícios, a
objetivar muitas coisas num debate que
tende a resvalar para um conflito insolúvel de valores. Mas não é verdadeiro, ou
pelo menos não é muito preciso, dizer
que quem chama a atenção para riscos
não imediatamente identificáveis e mensuráveis descarte inteiramente o utilitarismo e que esteja interessado somente
em paralisar ou desacelerar a pesquisa.
Nesse sentido, não parece justo incluir
autores como Bill McKibben e Sheldon
Krimsky na vala comum dos inimigos da
pesquisa, com Kass e Fukuyama. Afinal,
nem todo mundo que quer debater as escolhas dos pesquisadores está contra a
ciência. Para falar abertamente, é provável que estejam mais preocupados em
garantir-lhe um futuro do que cientistas
enfurnados em seus laboratórios.
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br
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