São Paulo, domingo, 07 de março de 2004

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Ciência em Dia

Em defesa das biotecnologias

Marcelo Leite
editor de Ciência

Não foi decerto só uma coincidência que a revista especializada "Science" tenha publicado no dia 20 um artigo em defesa das biotecnologias na medicina, do bioeticista americano Arthur Caplan, só um dia depois de começar a circular a edição da mais popular "New Scientist" com o texto do escocês Ian Wilmut em defesa da clonagem humana, comentado aqui na semana passada. Parece que a ficha está começando a cair.
Caplan abre o artigo com um título interrogativo ("A Pesquisa Biomédica É Perigosa Demais para Ser Levada à Frente?"), mas sua intenção óbvia é despachá-la com um sonoro "não". E olhe que o diretor do Centro de Bioética da Universidade da Pensilvânia (EUA) nem é um desses fundamentalistas da linha "pau na máquina", para os quais toda e qualquer linha de pesquisa e experimentação é por princípio válida e justificável. Ao contrário, ele já escreveu coisas bem críticas sobre a "hybris" tecnocientífica.
Acontece que Caplan sentiu o cheiro da brilhantina conservadora no ar e resolveu reagir. Com efeito, ele reúne entre as referências do artigo pelo menos dois pensadores ideologicamente muito próximos do governo George W. Bush, Leon Kass e Francis Fukuyama. O primeiro preside a Comissão de Bioética montada por encomenda de Bush, e o segundo faz parte dela a convite de Kass.
Ambos têm escrito extensivamente sobre os riscos que as maquinações das biotecnologias na medicina supostamente trariam à natureza humana, pela modificação de sua base biológica (com clonagem, certas técnicas de reprodução assistida, modulação do comportamento por remédios e genética e por aí vai).
Caplan diz que essas alegações não são muito convincentes. Afirma, com propriedade: "A própria natureza humana tem mudado drasticamente em reação à tecnologia". E mais: "Tampouco há razão para glorificar uma fase particular da evolução da natureza humana e declará-la sacrossanta".
Ele está certo, como ficou dito aqui em 15 de dezembro de 2002 a respeito de um livro de Fukuyama, "Nosso Futuro Pós-Humano". Uma natureza humana una e imutável constitui artigo de fé e, em geral, estabelece uma confusão entre fato (supostamente determinado pela biologia) e norma (aquilo que se pretende ver obedecido). É o que já se chamou, há tempos, de falácia naturalista.
Já menos tranqüila de aceitar é a tese de Caplan de que o único norte a ter em vista na pesquisa biomédica é o da bússola utilitarista, de largo uso em sua pátria -que é também a pátria do pragmatismo. Decerto ela ajuda, tomando em conta exclusivamente riscos e benefícios, a objetivar muitas coisas num debate que tende a resvalar para um conflito insolúvel de valores. Mas não é verdadeiro, ou pelo menos não é muito preciso, dizer que quem chama a atenção para riscos não imediatamente identificáveis e mensuráveis descarte inteiramente o utilitarismo e que esteja interessado somente em paralisar ou desacelerar a pesquisa.
Nesse sentido, não parece justo incluir autores como Bill McKibben e Sheldon Krimsky na vala comum dos inimigos da pesquisa, com Kass e Fukuyama. Afinal, nem todo mundo que quer debater as escolhas dos pesquisadores está contra a ciência. Para falar abertamente, é provável que estejam mais preocupados em garantir-lhe um futuro do que cientistas enfurnados em seus laboratórios.

E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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