São Paulo, domingo, 07 de junho de 2009

Texto Anterior | Índice

+ Marcelo Leite

Três erres


Apesar do progresso, nunca foram usados tantos animais em pesquisa

Os 200 anos do nascimento de Charles Darwin e os 150 da publicação de "Origem das Espécies" não são as únicas efemérides da ciência em 2009. Neste ano celebra-se também meio século do nascimento de um conceito generoso: 3R.
Três erres: "replacement, reduction, refinement". Numa tradução forçada para preservar a aliteração: retirada, redução e refinamento.
Substituir animais usados em pesquisa, reduzir seu emprego quando inevitável e diminuir seu sofrimento. (Sou fã dos minicódigos de ética em três passos. Nunca vou esquecer o que ouvi de um jornalista americano sobre as regras de conduta para nossa profissão: busque a verdade, aja com independência e minimize o dano.)
Os 3R foram propostos pelo zoólogo William Russell e pelo microbiologista Rex Burch em 1959, na obra "The Principles of Humane Experimental Technique" (título ainda mais difícil de traduzir, pois "humane" em inglês é o adjetivo reservado para quem mostra benevolência com animais).
Seria algo como "Princípios Humanitários da Técnica de Experimentação com Animais".
O livro foi uma encomenda para a comemoração dos cem anos de "Origem". Nada mais adequado, pois Darwin foi um campeão da compaixão com animais. A começar pelo animal-homem, cujo sofrimento físico provocava nele uma repulsa intensa, a ponto de os biógrafos Adrian Desmond e James Moore enxergarem em sua recusa da escravidão uma das ideias-força da teoria da evolução.
Meio século depois, muito progresso se obteve nos três erres. Modelos computacionais do corpo humano, bonecos robóticos e culturas de células e tecidos permitem substituir testes de remédios e treinamentos cirúrgicos que antes dependiam de mamíferos (camundongos, cães, gatos, coelhos, macacos etc.).
Análises clínicas e de imagem mais sofisticadas, por seu lado, possibilitam obter muita informação de um mesmo animal. Como eles muitas vezes são sacrificados depois do experimento, esse avanço economiza vidas individuais. Por fim, hoje existem protocolos rígidos sobre anestesia e níveis de estresse máximo para animais.
O cumprimento de tais normas costuma ser precondição para ter financiamento de pesquisa ou publicação de artigos científicos aprovados. Confiança é bom, mas controle é melhor, dizem os alemães.
Apesar desses progressos, nunca se usaram tantos animais em pesquisa.
Em parte isso decorre da explosão do campo de investigação biomédica nesse meio século. Com a capacidade de introduzir e "desligar" genes em organismos, camundongos transgênicos e "nocautes" se tornaram matéria-prima -ou vítimas- indispensáveis de laboratórios de ponta.
Muitos defensores dos direitos dos animais acreditam que já existem alternativas tecnológicas para substituir todos os animais em pesquisa. Infelizmente, não é verdade. Por outro lado, soa comodista demais a convicção de 73% dos pesquisadores britânicos de que cobaias nunca poderão ser dispensadas por completo dos laboratórios, como relatou a especialista Vicky Robinson na revista de divulgação "New Scientist".
Daria muita coisa para ver esse dia chegar, mas vai ser difícil. Enquanto isso, temos de ficar no pé dos cientistas para que em toda parte prestem o máximo de atenção aos 3R.
Só não vale partir para a ignorância e chamá-los de "nazistas", comparando seu trabalho com abjetas experiências em seres humanos. É uma questão de bom senso, como disse aqui na semana passada.


MARCELO LEITE é autor de "Folha Explica Darwin" (Publifolha, 2009) e do livro de ficção infanto-juvenil "Fogo Verde" (Editora Ática, 2009), sobre biocombustíveis e florestas. Blog: Ciência em Dia (cienciaemdia.folha.blog.uol.com.br). E-mail: cienciaemdia.folha@uol.com.br


Texto Anterior: Mosquitos contra tartarugas
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.