São Paulo, domingo, 07 de outubro de 2007

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Entubando Gaia

James Lovelock entra na onda da geoengenharia e propõe instalar grandes canos no mar para combater o aquecimento global

Suzanne De Chillo/"The New York Times"
O cientista britânico James Lovelock, autor da hipótese Gaia, segundo a qual a Terra se comporta como um ser vivo


JOHANN HARI
DO "INDEPENDENT"

Geoengenharia soa como um termo suave e técnico, mas na verdade é um movimento messiânico para salvar o mundo do aquecimento global, usando para isso poeira, ferro e minúsculos espelhos no espaço. Também é o último dos tabus verdes. Os ambientalistas, por instinto, se recusam a discuti-lo. O público geral, por instinto, acha que é loucura.
Mas há alguns dias o tabu foi quebrado. James Lovelock, um dos pais do ambientalismo moderno, propôs uma maneira de amenizar o aquecimento global sem precisar cortar o consumo de nenhum combustível fóssil.
Os geoengenheiros acreditam que a humanidade deveria deliberadamente alterar o ambiente do planeta de modo a contrabalançar os efeitos do aquecimento global.
Ken Caldera, especialista em geoengenharia do Instituto Carnegie, EUA, diz: "Nós já estamos "engenheirando" o clima ao emitir tantos gases-estufa. Só não queremos admiti-lo ".
Os grandes projetos de geoengenharia se dividem em dois tipos. O primeiro tenta aumentar a capacidade dos oceanos de absorver carbono do ar. A proposta mais simples é polvilhar grandes quantidades de ferro sobre a superfície dos mares mundo afora. Isso criaria as condições ideais para um pico de proliferação do plâncton, os microrganismos amigáveis que "comem" o carbono enquanto estão vivos. Ao morrer, eles afundam e se depositam no fundo do mar, levando com eles o carbono -que fica aprisionado. Experimentos de pequena escala dessa fertilização foram feitos no litoral das ilhas Galápagos e, de fato, fizeram com que mares "mortos" fervilhassem de plâncton.
Entra em cena James Lovelock, com uma proposta parecida. O autor da famosa hipótese Gaia -segundo a qual a Terra se comporta como um imenso organismo vivo- sugere outra maneira de estimular os oceanos a seqüestrar quantidades maciças de dióxido de carbono.
Seu plano é construir grandes tubos verticais nos oceanos. Eles bombeariam água do fundo do mar -rica em nutrientes, mas desprovida de plâncton- até a superfície. Essa água mais rica seria o habitat ideal para organismos comedores de carbono, como algas.
A sugestão foi apresentada em forma de uma carta, na edição de 27 de setembro da revista "Nature". Segundo Lovelock, ela é um "tratamento de emergência para a patologia do aquecimento global".
A segunda escola de geoengenharia busca meios de refletir uma quantidade maior de radiação solar de volta para o espaço. Por exemplo, sabemos que, quando os vulcões explodem, eles lançam enormes quantidades de partículas de enxofre na atmosfera, que funcionam como uma "capa" e conseguem ajudar o planeta a se resfriar. Cientistas como o Nobel Paul Crutzen têm sugerido que nós simulemos artificialmente esse efeito, ao espalhar enxofre na alta atmosfera. Na prática, isso equivale a combater poluição com poluição.
A Academia Nacional de Ciências dos EUA foi ainda mais longe, sugerindo que 55 mil espelhos colocados na atmosfera seriam suficientes para anular cerca de metade do impacto do aquecimento.
Então por que os verdes relutam em discutir tais soluções? Para entender, é preciso ouvir o filósofo Edmund Burke. No século 18, ele argumentou que o funcionamento da sociedade é tão complexo que a mente racional humana não poderia compreendê-lo totalmente.
Se você tomasse uma decisão por motivos impecavelmente racionais, acabaria descobrindo que ela incorre também em muitas conseqüências não previsíveis, possivelmente indesejáveis. Burke estava enganado sobre sociedades humanas -mas, ironicamente, sua abordagem se aplica bastante bem ao ecossistema da Terra.
Pense novamente nos projetos de geoengenharia que estamos discutindo e você verá por que. Planos de fazer o plâncton e as algas "comerem" carbono para nós entram em conflito com uma conseqüência não-intencional. Matéria orgânica demais afundando toda de uma vez desencadeia a liberação de metano, o mais forte gás-estufa. E bombear enxofre na atmosfera? Caldera explica: "Um dos problemas é que isso destruiria a camada de ozônio".
Esses projetos não lidam também com o outro grande problema causado por nossas emissões: elas estão tornando os oceanos mais ácidos. Mesmo que controlemos o aquecimento global, o aumento de carbono na atmosfera ainda mataria os oceanos e arruinaria nossas fontes de alimento.
Não obstante, a indústria de combustíveis fósseis deve lançar o marketing da geoengenharia como "A Solução", uma alternativa aos cortes de emissões. O cientista Josh Tosteson apresenta a reação necessária ao perguntar: "Nós temos mesmo a capacidade de entender sistemas complexos bem o suficiente para fazer perturbações conscientes que resultem apenas em conseqüências desejadas, e nada mais?"
Continuar a emitir gases-estufa na esperança de poder usar a geoengenharia é o mesmo que dizer a um alcoólatra para não parar de beber e optar por um transplante de fígado no futuro -um transplante feito com facas enferrujadas esquecidas numa garagem.


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