São Paulo, domingo, 08 de fevereiro de 2004

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Ciência em Dia

Efeito VLS

Marcelo Leite
editor de Ciência

Faz mais de 200 anos que Immanuel Kant ensinou ao mundo o princípio da publicidade, segundo o qual todo ato de governo que necessite de segredo para se realizar é contrário à moralidade pública, mas muitos funcionários públicos brasileiros -em particular nalguns setores dos estamentos militar e diplomático, em que a noção de sigilo se confunde com a cultura da corporação- ainda carecem de aprender essa lição básica.
Decerto há, e deve haver, exceções ao princípio -como situações de guerra, ou talvez umas poucas ameaças imagináveis à segurança nacional. Nesses casos, o motivo do sigilo tem de ser regulamentado e demonstrado, e não ficar ao arbítrio do funcionário em questão.
Não há razão à vista que justifique enquadrar o incêndio do terceiro protótipo do foguete VLS (Veículo Lançador de Satélites) entre tais exceções. O programa espacial brasileiro é pelo menos parcialmente civil, sob a égide de uma repartição civil (a AEB, Agência Espacial Brasileira, ligada ao Ministério da Ciência e Tecnologia), assim como eram civis os 21 funcionários que morreram no acidente de 22 de agosto de 2003. Em teoria, pelo menos, o Ministério da Defesa representa a decisão da sociedade e do Estado de pôr as corporações militares definitivamente sob comando e controle civis.
Esse ministério dá, no entanto, seguidas demonstrações de que parece acreditar no oposto do princípio civil da publicidade, ao menos no que se refere à investigação do acidente. Talvez pelo fato de o VLS ser projetado e construído pelo parceiro militar do programa espacial (o IAE, Instituto de Aeronáutica e Espaço) e de o foguete poder ser adaptado para usos bélicos, nesses quase seis meses de investigação tudo foi cercado de segredo.
Na sua última manifestação de predileção desmesurada pela auto-suficiência, o Ministério da Defesa fez distribuir à imprensa um comunicado que daria comichões em Kant (se é que ele algum dia foi capaz disso), sob o título "Esclarecimento a Propósito de Notícias Relacionadas ao Acidente com o VLS":
"Com relação a reportagens veiculadas sobre o acidente com o VLS, em Alcântara, o Ministério da Defesa reitera (já que vem informando normalmente aos jornalistas interessados) que as notícias divulgadas até o momento tomam por base informações especulativas. A garantia da informação precisa e não parcial virá com o texto final do relatório da comissão que investiga o acidente e esse relatório ainda não foi concluído.
"Ou seja, a título de bem informar, esclareça-se:
"- Não há previsão de data da divulgação do relatório sobre o acidente de Alcântara;
"- A Comissão que investiga o acidente vem trabalhando árdua, mas normalmente, no sentido de oferecer, tão logo possível, o relatório final;
"- Assim que houver uma data quanto à divulgação do texto final e oficial, o Ministério da Defesa informará aos órgãos de imprensa;
"- O Governo tem todo interesse em prestar esses esclarecimentos à sociedade e com inteira transparência."
Em bom português: fazemos o que bem entendemos, na hora em que bem entendemos, e daremos satisfações ao público se assim bem entendermos e no momento em que bem entendermos conveniente. Em nome da transparência, oferecemos cortina de fumaça. E chamamos de "especulação" as tentativas de descobrir e entender as dificuldades técnicas e disputas entre grupos que já levaram a várias prorrogações dos trabalhos da comissão de investigação.

E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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