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O dilema do projetista de armas
Historiador
da ciência discute se existe consolo para Mikhail Kalashnikov,
o inventor do mortífero
rifle AK-47
Juda Ngwenya
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Mapa da África feito de pedaços de rifles Kalashnikov |
JOHN FORGE
O
legendário rifle de
assalto AK-47 foi
inventado em
1946 por Mikhail
Kalashnikov. Ele
foi criado para os exércitos dos
países do antigo Pacto de Varsóvia e usado em muitos conflitos: pelo Exército norte-vietnamita, pelos soldados soviéticos
no Afeganistão e, também, pelos agentes da rede terrorista
Al Qaeda, no Iraque.
Em idade avançada, Mikhail
Kalashnikov passou a ter algumas dúvidas sobre sua invenção. Ele disse ao "The Times"
em junho de 2006: "Não me
preocupo quando minhas armas são usadas para a libertação ou a defesa nacional. Mas,
quando vejo pessoas pacíficas
sendo mortas e feridas por essas armas, fico muito perturbado e contrariado. Eu me acalmo dizendo a mim mesmo que
inventei essa arma 60 anos
atrás para proteger os interesses do meu país".
Os comentários de Kalashnikov apontam para um dilema
de qualquer projetista de armamentos -na verdade qualquer um que participe das várias áreas da ciência aplicada e
da engenharia que podemos
reunir sob o termo guarda-chuva de "pesquisa de armamentos".
Eis o dilema: em primeiro lugar, a pesquisa de armamentos
não produz armas, bombas, balas e aviões e os diversos hardwares e softwares de comando,
controle e comunicações necessários para usar essas coisas, mas, sim, planos, plantas e
projetos -conhecimento e
know-how.
Futuro imprevisível
A menos que esses planos
úteis sejam perdidos ou destruídos, eles podem ser implementados ou adaptados várias
vezes, e assim se projetam no
futuro de forma imprevisível.
O projeto do AK-47, ao contrário de armas individuais,
não se desgasta; e desde que os
materiais e as técnicas estejam
disponíveis eles podem ser feitos em qualquer momento no
futuro.
Suponha que J, uma pesquisadora de armas, projete uma
arma porque seu país sofre sérias ameaças de um invasor
maligno: há muitos exemplos
disso, de Arquimedes a Watson-Watt, o inventor do radar,
e outros.
Mas quando a emergência
passou e não há mais uma causa justa para usar a arma, a invenção de J é usada em outras
circunstâncias que ela não
aprova, como uma guerra injusta. O que J deveria fazer? E
esse é realmente um problema
geral, ou algo que só preocupa
Kalashnikov?
Uma saída do dilema é recusar-se a fazer pesquisa bélica
sob quaisquer circunstâncias.
Uma outra possibilidade é a
de que a pesquisa de armamentos não seja uma atividade que
deva levar em conta contingências históricas.
Ou melhor, talvez haja algumas armas nas quais é sempre
moralmente aceitável trabalhar -talvez armas puramente
defensivas ou armas inteligentes, as quais, ao contrário das
bombas atômicas, discriminam
a favor dos civis e contra os
combatentes.
Moralmente inaceitável
Eu também não acho que essa sugestão funcione. Devemos
reconhecer que não existe tal
coisa como uma arma inerentemente defensiva, algo que só
possa ser usado para o objetivo
moralmente aceitável de reagir
contra um agressor.
Fazer pesquisa de armamentos para sistemas defensivos,
portanto, não é moralmente
aceitável, pois qualquer arma
poderia viavelmente ser usada
como parte de uma guerra ou
agressão injusta.
A descrição favorita de Kalashnikov do que ele fez quando
projetou o AK-47 é algo como
"fornecer os meios para a libertação" ou "defender meu país",
e não "fornecer os meios para
matar inocentes". No entanto
reconhece que a descrição posterior se aplica igualmente bem
a sua situação.
O único consolo
Mas J poderia tentar retratar
seus atos como "fornecer os
meios para dissuasão", a idéia
de que o que ela ajudou a criar
destina-se a dissuadir e portanto evitar danos, mais que causá-los. A resposta aqui é essencialmente a mesma que acima.
Não há consolo para Kalashnikov? Eu acho que seu único
consolo é divulgar sua história
para todos os jovens cientistas
e sugerir que eles nunca realizem pesquisas de armamentos
em tempos de paz.
Eles só deveriam fazer pesquisa de armamentos nas épocas em que houver uma ameaça
imediata de agressão contra
seu país.
Além disso, deveriam formar
um coletivo e só realizar pesquisa de armamentos sob a
condição de que eles detenham
o direito autoral ou a patente de
seu trabalho. O trabalho é então concedido sob licença para
produtores de armas patrocinados pelo Estado até que a
ameaça tenha passado.
Quaisquer armas restantes
devem ser destruídas. Você poderia dizer que isso é utópico e
nunca funcionaria. Mas poderia consolar Kalashnikov, que,
afinal, era um marxista e talvez
também um utópico.
JOHN FORGE é membro da Unidade para História e Filosofia da Ciência da Universidade de
Sydney (Austrália) e trabalha na área de ciência
e responsabilidade. A íntegra deste texto foi publicada na revista "Philosophy Now".
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
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