São Paulo, domingo, 08 de abril de 2007

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O dilema do projetista de armas

Historiador da ciência discute se existe consolo para Mikhail Kalashnikov, o inventor do mortífero rifle AK-47

Juda Ngwenya
Mapa da África feito de pedaços de rifles Kalashnikov


JOHN FORGE

O legendário rifle de assalto AK-47 foi inventado em 1946 por Mikhail Kalashnikov. Ele foi criado para os exércitos dos países do antigo Pacto de Varsóvia e usado em muitos conflitos: pelo Exército norte-vietnamita, pelos soldados soviéticos no Afeganistão e, também, pelos agentes da rede terrorista Al Qaeda, no Iraque.
Em idade avançada, Mikhail Kalashnikov passou a ter algumas dúvidas sobre sua invenção. Ele disse ao "The Times" em junho de 2006: "Não me preocupo quando minhas armas são usadas para a libertação ou a defesa nacional. Mas, quando vejo pessoas pacíficas sendo mortas e feridas por essas armas, fico muito perturbado e contrariado. Eu me acalmo dizendo a mim mesmo que inventei essa arma 60 anos atrás para proteger os interesses do meu país".
Os comentários de Kalashnikov apontam para um dilema de qualquer projetista de armamentos -na verdade qualquer um que participe das várias áreas da ciência aplicada e da engenharia que podemos reunir sob o termo guarda-chuva de "pesquisa de armamentos". Eis o dilema: em primeiro lugar, a pesquisa de armamentos não produz armas, bombas, balas e aviões e os diversos hardwares e softwares de comando, controle e comunicações necessários para usar essas coisas, mas, sim, planos, plantas e projetos -conhecimento e know-how.

Futuro imprevisível
A menos que esses planos úteis sejam perdidos ou destruídos, eles podem ser implementados ou adaptados várias vezes, e assim se projetam no futuro de forma imprevisível. O projeto do AK-47, ao contrário de armas individuais, não se desgasta; e desde que os materiais e as técnicas estejam disponíveis eles podem ser feitos em qualquer momento no futuro.
Suponha que J, uma pesquisadora de armas, projete uma arma porque seu país sofre sérias ameaças de um invasor maligno: há muitos exemplos disso, de Arquimedes a Watson-Watt, o inventor do radar, e outros. Mas quando a emergência passou e não há mais uma causa justa para usar a arma, a invenção de J é usada em outras circunstâncias que ela não aprova, como uma guerra injusta. O que J deveria fazer? E esse é realmente um problema geral, ou algo que só preocupa Kalashnikov?
Uma saída do dilema é recusar-se a fazer pesquisa bélica sob quaisquer circunstâncias. Uma outra possibilidade é a de que a pesquisa de armamentos não seja uma atividade que deva levar em conta contingências históricas. Ou melhor, talvez haja algumas armas nas quais é sempre moralmente aceitável trabalhar -talvez armas puramente defensivas ou armas inteligentes, as quais, ao contrário das bombas atômicas, discriminam a favor dos civis e contra os combatentes.

Moralmente inaceitável
Eu também não acho que essa sugestão funcione. Devemos reconhecer que não existe tal coisa como uma arma inerentemente defensiva, algo que só possa ser usado para o objetivo moralmente aceitável de reagir contra um agressor. Fazer pesquisa de armamentos para sistemas defensivos, portanto, não é moralmente aceitável, pois qualquer arma poderia viavelmente ser usada como parte de uma guerra ou agressão injusta.
A descrição favorita de Kalashnikov do que ele fez quando projetou o AK-47 é algo como "fornecer os meios para a libertação" ou "defender meu país", e não "fornecer os meios para matar inocentes". No entanto reconhece que a descrição posterior se aplica igualmente bem a sua situação.

O único consolo
Mas J poderia tentar retratar seus atos como "fornecer os meios para dissuasão", a idéia de que o que ela ajudou a criar destina-se a dissuadir e portanto evitar danos, mais que causá-los. A resposta aqui é essencialmente a mesma que acima. Não há consolo para Kalashnikov? Eu acho que seu único consolo é divulgar sua história para todos os jovens cientistas e sugerir que eles nunca realizem pesquisas de armamentos em tempos de paz.
Eles só deveriam fazer pesquisa de armamentos nas épocas em que houver uma ameaça imediata de agressão contra seu país. Além disso, deveriam formar um coletivo e só realizar pesquisa de armamentos sob a condição de que eles detenham o direito autoral ou a patente de seu trabalho. O trabalho é então concedido sob licença para produtores de armas patrocinados pelo Estado até que a ameaça tenha passado.
Quaisquer armas restantes devem ser destruídas. Você poderia dizer que isso é utópico e nunca funcionaria. Mas poderia consolar Kalashnikov, que, afinal, era um marxista e talvez também um utópico.


JOHN FORGE é membro da Unidade para História e Filosofia da Ciência da Universidade de Sydney (Austrália) e trabalha na área de ciência e responsabilidade. A íntegra deste texto foi publicada na revista "Philosophy Now".

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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