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O sonho de Kepler
Cientista foi autor do primeiro conto de ficção sobre extraterrestres
Em ciência, existem alguns casos
famosos de sonhos que inspiraram grandes descobertas. Um
deles foi o do químico alemão August
Kekulé. Após anos tentando desvendar a estrutura do benzeno, Kekulé,
em um devaneio diurno, visualizou
uma serpente mordendo o próprio rabo, como no símbolo do Ourobouros.
Daí deduziu que o benzeno tivesse a
estrutura de um "anel" com seis átomos de carbono. Einstein também
inspirou-se em fantasias diurnas para
criar suas teorias ousadas. Numa delas, imaginou-se cavalgando ao lado
de uma onda de luz. Note que esses
"sonhos" não eram do tipo noturno,
mas visões alegóricas que ocorriam
durante o dia.
Outros cientistas e filósofos usaram
alegorias para polemizar ou para atingir uma faixa maior da população, não
especializada nas suas disciplinas.
Dessas alegorias, talvez a primeira delas, seja o "Sonho", de Johannes Kepler, publicado postumamente em
1634. Como os leitores do meu romance "A Harmonia do Mundo" sabem, para mim Kepler é um dos personagens mais relevantes e fascinantes da história da ciência, arquiteto,
junto com Galileu Galilei e, posteriormente, Isaac Newton, da grande revolução copernicana que, no final da Renascença, redefiniu a visão de mundo
da sociedade européia.
"Sonho" é um conto de ficção científica -que eu saiba, o primeiro a tratar da possibilidade de vida extraterrestre. No caso, Kepler usou a Lua como cenário. Como afirmou nas amplas notas que acompanham o conto,
seu objetivo foi usar o movimento da
Lua como argumento em favor do movimento da Terra. Para tal, Kepler
usou a astronomia da época com tremenda coragem intelectual, proclamando que a Lua era muito mais parecida com a Terra do que os filósofos e a
Igreja pregavam. Nosso satélite não
era feito de éter e sim de pedra, e tinha
crateras e montanhas como a Terra.
Kepler adicionou também rios, mares
e lagos, onde as criaturas lunares nadavam. Ele imaginava esses seres como sendo inteligentes, capazes, por
exemplo, de construir barcos tal como
nós aqui na Terra.
Existem duas raças de seres, os Subvolvanos e os Privolvanos. (Os nomes
são inspirados pelo fato de esses seres
verem a Terra revolver nos céus.) Os
Privolvanos habitam as regiões do lado oculto da Lua e nunca vêem a Terra. Suas noites são escuras e frias. Seus
dias muito quentes. Já os Subvolvanos
estão sempre de frente para a Terra.
Suas noites são claras, já que, para
eles, a Terra tem o tamanho de 15 luas
para nós. Um dia e uma noite para as
criaturas da Lua equivalem a um mês
terrestre.
Kepler cria uma realidade mágica
para justificar sua viagem até a Lua.
Influenciado pela mãe, que quase foi
queimada na fogueira acusada de bruxarias, conjurou espíritos das sombras capazes de transportar seres humanos pelo espaço. O conto é uma homenagem à sua mãe e à sua crença em
uma realidade paralela àquela explicada pela ciência. Mas se a fórmula
para se chegar à Lua era mágica e sobrenatural, a análise da astronomia
sob o ponto de vista dos seres lunares
é firmemente baseada em cálculos e
observações. Outros seres espalhados
pelo espaço terão visões diferentes do
céu; não somos os únicos a olhar para
a noite e a medir o cosmo.
Na descrição das criaturas, Kepler
chega a mencionar seres "monstruosos e gigantescos", "esponjosos e porosos", formas de vida adaptadas à
realidade lunar, completamente diferentes das encontradas aqui. Ou seja,
250 anos antes de Wallace e Darwin,
Kepler antevê que a vida se adapta às
condições locais, a semente da idéia
da evolução por seleção natural. Nada
mal para um mero "sonho".
MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA) e autor do livro "A Harmonia do Mundo"
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