São Paulo, terça-feira, 08 de junho de 2004

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OPINIÃO

Gaia precisa da energia nuclear

JAMES LOVELOCK
ESPECIAL PARA O "INDEPENDENT"

Sir David King, conselheiro-chefe de ciência do governo britânico, enxergou longe quando disse que o aquecimento global é uma ameaça mais séria do que o terrorismo. Ele pode até ter subestimado a ameaça, porque, desde que falou, novas evidências de mudança climática sugerem que ela possa ser ainda mais séria, o maior perigo já enfrentado pela civilização.


A oposição à energia nuclear está baseada em medo irracional


A maioria de nós está consciente do aquecimento em alguma medida. Os invernos estão mais quentes, e a primavera está chegando mais cedo. No Ártico, porém, o aquecimento é mais que duas vezes maior do que na Europa, e no verão torrentes de água de degelo escorrem das geleiras quilométricas da Groenlândia.
A completa dissolução de suas montanhas de gelo tomará tempo, mas, quando ocorrer, os mares terão subido sete metros, o bastante para tornar inabitáveis todas as cidades baixas costeiras do mundo, incluindo Londres, Veneza, Calcutá, Nova York e Tóquio. Mesmo uma elevação de dois metros seria o bastante para pôr a maior parte do sul da Flórida debaixo d'água.
O gelo flutuante no oceano Ártico é ainda mais vulnerável ao aquecimento. Em 30 anos, sua superfície de gelo branco refletor, que tem a área dos Estados Unidos, pode tornar-se um mar escuro, que absorve o calor da luz solar estival e com isso apressa ainda mais o fim do gelo da Groenlândia. O pólo Norte, meta de tantos exploradores, será então não mais que um ponto na superfície do oceano.
E não é apenas o Ártico que está mudando. Climatologistas avisam que um aumento de 4C na temperatura é o suficiente para eliminar as vastas florestas da Amazônia, uma tragédia para seu povo, para sua biodiversidade e para o mundo, que perderia um de seus grandes condicionadores de ar naturais.
Os cientistas que trabalham no Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC) relataram em 2001 que a temperatura global subiria entre 2C e 6C até o ano 2100. Sua previsão sombria tornou-se perceptível com o calor excessivo do último verão. De acordo com meteorologistas suíços, a onda de calor européia que matou 20 mil pessoas foi inteiramente diversa de qualquer outra onda de calor. A chance de que seja apenas um desvio da norma é de 1 em 300 mil. É um alerta de que coisas piores virão.
O que torna o aquecimento global tão sério e urgente é que o grande sistema da Terra, Gaia, está aprisionado num círculo vicioso de feedback positivo. O calor extra de todas as fontes -seja dos gases do efeito estufa [retenção de radiação solar na atmosfera], seja do desaparecimento do gelo ártico ou da floresta amazônica- é amplificado, e seus efeitos não se resumem à somatória. É quase como se tivéssemos acendido uma lareira para nos aquecer e deixado de notar que, à medida que empilhávamos a lenha, o fogo saía de controle e a mobília já estava em chamas. Quando isso acontece, há pouco tempo para controlar o fogo antes que ele consuma a casa. O aquecimento global, como um incêndio, está se acelerando, e quase não sobra tempo para agir.
O que devemos fazer, então? Podemos continuar a gozar um século 21 mais quente, enquanto ele durar, e fazer tentativas cosméticas, como o Protocolo de Kyoto, para camuflar o embaraço político do aquecimento global, e temo que isso seja o que vai ocorrer em boa parte do mundo.
Quando, no século 18, apenas 1 bilhão de pessoas vivia na Terra, seu impacto era pequeno o bastante para que não importasse que fonte de energia usavam. Mas, com 6 bilhões para mais, restam poucas opções; não podemos continuar a extrair energia de combustíveis fósseis, e não há chance de que as fontes renováveis -vento, marés e hidrelétricas- possam prover a energia necessária em tempo hábil.
Se tivéssemos 50 anos ou mais, poderíamos fazer delas nossas fontes principais, mas não temos 50 anos. A Terra já está tão incapacitada pelo veneno insidioso dos grases-estufa que, mesmo se pararmos de queimar combustíveis fósseis imediatamente, as conseqüências pelo que já fizemos durarão ainda mil anos. Cada ano em que continuamos a queimar carbono torna as coisas piores para nossos descendentes e nossa civilização.
Pior, queimar vegetais cultivados para combustível pode acelerar o declínio. A agricultura já usa terra demais necessária para o planeta regular seu clima e sua química. Um carro consome 10 a 30 vezes mais carbono do que seu motorista; imagine o acréscimo de terras necessário para satisfazer o apetite por carros.
Sim, vamos usar a pequena contribuição das fontes renováveis sensatamente, mas uma única fonte imediatamente disponível é incapaz de causar aquecimento global -a energia nuclear. É verdade que queimar gás natural em lugar de carvão ou petróleo emite a metade de gás carbônico (CO2), mas o gás não-queimado é um gás-estufa 25 vezes mais potente do que CO2. Um pequeno vazamento já neutralizaria a vantagem do gás natural.
A perspectiva é sombria, e, mesmo que atuemos com sucesso na mitigação, ainda haverá tempos difíceis, como na guerra, que vão pressionar nossos netos até o limite. Somos resistentes, e será preciso mais que uma catástrofe climática para eliminar toda a reprodução entre casais humanos. O que está em risco é a civilização.
Como animais individuais não somos tão especiais e, de certo modo, somos como uma doença planetária, mas por meio da civilização nos redimimos e nos tornamos um patrimônio precioso para a Terra -ao menos porque, por nossos olhos, a Terra se viu a si mesma em toda a sua glória.
Há uma chance de que sejamos salvos por um evento inesperado, tal como uma série de erupções vulcânicas intensas o suficiente para bloquear a luz solar e, assim, esfriar a Terra. Mas somente perdedores apostariam suas vidas com chances tão pequenas. Quaisquer que sejam as dúvidas sobre o clima futuro, não há dúvida de que gases-estufa e temperaturas estão ambos subindo.
Permanecemos na ignorância por muitas razões; importante, entre elas, é a negação da mudança climática nos EUA, em que os governos têm falhado em dar a seus climatologistas o apoio de que necessitam. Os lobbies verdes, que deveriam dar prioridade ao aquecimento global, parecem mais preocupados com as ameaças às pessoas do que à Terra, sem perceber que somos parte dela e totalmente dependentes de seu bem-estar. Pode ser preciso um desastre pior do que o último verão europeu para nos despertar.
A oposição à energia nuclear está baseada em medo irracional, alimentado pela ficção de estilo hollywoodiano, pelo lobby verde e pela mídia. Esses receios são injustificados, e a energia nuclear tem provado, desde o seu início em 1952, ser a mais segura das fontes de energia.
Precisamos parar de tremer diante dos diminutos riscos estatísticos de câncer por compostos químicos e radiação. Cerca de um terço de nós morrerá de câncer, de todo modo, principalmente porque respiramos ar carregado com o carcinogênico mais comum, oxigênio. Se falharmos em concentrar nossas mentes no perigo real, o aquecimento global, poderemos morrer ainda mais cedo de superaquecimento, como os mais de 20 mil infelizes na Europa do verão passado.
Considero triste e irônico que o Reino Unido, que lidera o mundo na qualidade de seus cientistas da Terra e do clima, rejeite seus avisos e conselhos e prefira ouvir os Verdes. Mas eu sou um Verde e convoco meus amigos no movimento a abandonar sua objeção equivocada à energia nuclear.
Mesmo que estejam certos em relação aos perigos, e não estão, seu emprego mundial como fonte principal de energia representaria uma ameaça insignificante, se comparada com os riscos de ondas de calor intoleráveis e letais e com a elevação dos mares que inundaria as cidades costeiras.
Não temos tempo para experimentar com fontes visionárias de energia; a civilização está em perigo iminente e tem de empregar energia nuclear -a única fonte segura disponível- agora, ou então suportar a dor que logo lhe infligirá nosso planeta enfurecido.

James Lovelock, 84, britânico, é escritor, cientista independente e criador da hipótese Gaia, segundo a qual a Terra é um organismo auto-regulado


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