São Paulo, sábado, 08 de outubro de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

PALEONTOLOGIA

Americano afirma que fóssil famoso de réptil emplumado chinês foi forjado; descobridor nega acusação

Dino de quatro asas é fraude, diz cientista

CLAUDIO ANGELO
ENVIADO ESPECIAL A AUSTIN (EUA)

O célebre dinossauro chinês de quatro asas que deixou os cientistas boquiabertos ao ser apresentado, dois anos atrás, provavelmente não passa de uma fraude. A acusação foi feita por um pesquisador americano e abre na academia um debate sobre honestidade intelectual, tráfico de fósseis e colonialismo científico ocidental.
O paleontólogo Tim Rowe, da Universidade do Texas em Austin, declarou à Folha que o fóssil do Microraptor gui -considerado uma das maiores descobertas científicas de 2003- foi habilmente forjado a partir de restos de duas espécies de dinossauro e uma de ave. E enganou até os editores de uma das principais revistas científicas do mundo, "Nature" (www.nature.com), que publicou o achado em sua capa.
"Acho que esse artigo precisa ser desmentido", disse Rowe, em entrevista no laboratório de tomografia computadorizada de fósseis por raios X da universidade, que ele dirige.
O americano entende de fraudes paleontológicas. Foi ele quem desmontou, em 2000, a farsa do Archaeoraptor, outro fóssil chinês, trombeteado no final dos anos 1990 como o elo perdido entre dinossauros e aves -e que acabou entrando para a história como a maior falsificação da paleontologia moderna.
A tomografia computadorizada do Archaeoraptor mostrou que o fóssil foi montado com a cauda de um pequeno dinossauro predador e o corpo de uma ave, colados em um pedaço de rocha por contrabandistas de fósseis chineses. Rowe diz acreditar que o mesmo tipo de montagem tenha sido feito no caso do Microraptor gui.
"Não consigo ver associação entre a parte anterior do fóssil [onde está a cabeça] e a posterior [onde está a cauda]", disse o cientista.
A espécie, descrita por uma equipe chinesa liderada por Xing Xu, hoje no Museu Americano de História Natural, em Nova York, é considerada uma descoberta revolucionária por causa das penas longas não só nos braços ("asas") como também nas pernas. Nela estaria a resposta a um dos grandes enigmas da evolução: como as aves, que descendem dos dinossauros, aprenderam a voar.
Xu e seus colegas teorizaram que as penas do M. gui o habilitariam a saltar entre árvores com vôos curtos, planados, como fazem hoje alguns esquilos.
Com imagens do fóssil do artigo original da "Nature" abertas na tela de seu computador, Rowe vai apontando o que ele chama de "discrepâncias" no M. gui: "As fibras das penas não parecem continuar depois da fratura na rocha. E há uma diferença clara de densidade entre rochas que contêm diferentes partes do fóssil", afirma.

Photoshop
"Mas o que eu acho mais enervante é isso aqui." Rowe aponta, então, para uma fratura na rocha na fotografia do fóssil. Na tomografia, ao lado, a mesma fratura parece apagada. "Eu não consigo explicar, pelas leis da física, como uma fratura pode aparecer numa foto e desaparecer numa tomografia. Mas posso explicar pelas leis da natureza humana. Isso parece Photoshop para mim", afirma, referindo-se ao software que permite manipular imagens digitais.
Rowe diz que convidou Xu duas vezes para trazer o espécime para ser tomografado em Austin. A alta resolução do aparelho da universidade permitiria sanar quaisquer dúvidas. "Eu me ofereci para pagar todos os custos da viagem e o exame. Ele não aceitou."
Rowe diz que alertou o editor da "Nature" Henry Gee sobre a possível fraude. Gee disse não ter "nada definitivo" sobre o assunto.
Procurado pela Folha, Xu disse que não se recusou a levar o espécime para Austin. "O que aconteceu foi que, na primeira vez que ele fez o convite, eu estava atrapalhado me mudando para os EUA. Na segunda vez, o fóssil estava no Japão, e eu não iria tirá-lo da exposição. Ele não é meu chefe. Não sou obrigado a levar o espécime a Austin. Ele não teve paciência, o que me deixa meio com raiva."
O pesquisador, de 34 anos, que descreveu e batizou vários fósseis espetaculares de dinossauro emplumado da região de Liaoning, China, afirma não ter dúvidas sobre a autenticidade do M. gui. Ele diz que, se alguém tem evidências em contrário, pode se sentir à vontade para publicá-las num periódico científico -o que Rowe não fez. "A tomografia computadorizada pode ser útil para obter informação sem danificar o espécime, mas também é verdade que a densidade de um único pedaço intacto de folhelho [tipo de rocha que contém os fósseis do M. gui] pode mudar dramaticamente." Ele afirma ter visto esse padrão de preservação em pelo menos 15 espécimes de Liaoning.

Mundos em choque
Xu acusa os paleontólogos norte-americanos de tentarem monopolizar o campo e de não aceitarem o trabalho de cientistas do Oriente. "Eles tentam dizer: "Este é nosso campo, nós sabemos tudo sobre ele e se você não tem as nossas técnicas, você está errado"."
Rowe diz que as visões ocidentais e orientais de padrões científicos podem ser reconciliadas pelas novas tecnologias de imagem. Xu rebate: "A máquina dele vai ser juiz da autenticidade do meu espécime? Acho que não".


O jornalista Claudio Angelo viajou a Austin a convite da SEJ (Sociedade de Jornalistas Ambientais) dos EUA


Texto Anterior: Biomedicina: Rico e famoso tem privilégio, afirmam terceiro-mundistas
Próximo Texto: Panorâmica - Espaço: Sonda japonesa tem problema com giroscópio
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.