São Paulo, Segunda-feira, 08 de Novembro de 1999
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CIÊNCIA
China tem fósseis mais antigos de vertebrados

MARCELO LEITE
especial para a Folha

Cientistas chineses e britânicos fisgaram em pleno período Cambriano (545 milhões a 490 milhões de anos atrás) os mais antigos vestígios de animais vertebrados de que se tem notícia. São bisavós de peixes, ainda desprovidos de mandíbulas, que tiveram seus corpos quase milagrosamente preservados.
A descoberta recua entre 20 milhões e 50 milhões de anos a datação de fósseis de vertebrados (animais dotados de coluna vertebral, como peixes, aves e mamíferos). Entre as implicações científicas do achado está um reforço para a tese de que ossos são uma invenção relativamente recente da natureza.
Os nomes atribuídos aos dois organismos são impronunciáveis para o leigo: Haikouichthys ercaicunensis e Myllokunmingia fengjiaoa. Os paleontólogos (estudiosos de fósseis) que os descobriram contam na revista "Nature" da semana passada que não encontraram sinal algum de mineralização em seus tecidos -ou seja, eles não tinham ossos.
Isso ajuda a explicar por que são tão raros os fósseis desses ancestrais de todos os vertebrados. Tecidos ósseos são mais propícios à fossilização, que não passa da substituição de substâncias orgânicas por minerais nas formas de um organismo morto.
Estruturas mais moles, como cartilagens, couro e órgãos internos, muito raramente dão origem a fósseis. Da época do Cambriano só se conhecem dois sítios em que esses tecidos foram preservados: Burgess, no Canadá, e Chengjiang, na China.
Desses dois locais provém a coleção de fósseis de uma fauna espetacular, batizada como Ediacara. O repentino surgimento de tantos e tão diferentes animais multicelulares no registro geológico ficou conhecido como explosão do Cambriano.
Até agora, faltavam colunas vertebrais nessa explosão. Havia indícios de cordados, o grupo mais abrangente a que se filiam os vertebrados, mas são muito controversos.
Os vestígios encontrados por Simon Conway Morris, da Universidade de Cambridge (Reino Unido), e seus colegas chineses são inequivocamente de vertebrados. Crânios, guelras, nadadeiras -tudo parece estar lá.
"Os dois novos fósseis (...) de Chengjiang são os mais convincentes vertebrados do Cambriano jamais encontrados", escreveu na mesma edição da "Nature" o paleontólogo Philippe Janvier, que não participou da descoberta.
Conway Morris é um grande nome da paleontologia, e não só para o público especializado. Ele liderou a escavação em Burgess, a primeira formação a revelar a estranha fauna Ediacara.
Alguns desses organismos eram tão bizarros que motivaram o não menos conhecido paleontólogo e ensaísta norte-americano Stephen Jay Gould a escrever um livro inteiro sobre eles. A obra de divulgação, "Vida Maravilhosa", tornou-se um best seller (lançado no Brasil pela editora Companhia das Letras).
Gould defendia no livro a idéia de que a explosão cambriana tinha sido um gigantesco experimento da natureza com as mais disparatadas arquiteturas corporais. Somente umas poucas teriam dado certo, entre elas a que originaria os vertebrados.
Para Gould, há grande dose de acaso nesse processo. Se fosse possível dar um "reset" no enredo da evolução, ela provavelmente seguiria um roteiro ligeiramente diferente -e talvez não houvesse vertebrados nem humanos sobre a Terra.
Conway Morris não parece ter gostado muito das interpretações dos fósseis de seus organismos popularizadas pelo colega de Harvard (Cambridge, Massachusetts, nordeste dos EUA). Acabou lançando seu próprio livro sobre a fauna de Burgess, "The Crucible of Creation - The Burgess Shale and the Rise of Animals".


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