São Paulo, quinta-feira, 09 de janeiro de 2003

Próximo Texto | Índice

BIOSSEGURANÇA

Microrganismo destrói o próprio DNA depois de executar sua tarefa, evitando contaminação do ambiente

Fungo suicida reduz risco de transgênico

REINALDO JOSÉ LOPES
FREE-LANCE PARA A FOLHA

Um fungo geneticamente modificado que comete suicídio depois de cumprir sua função num processo industrial pode tornar mais seguros os microrganismos transgênicos. Criado por pesquisadoras da USP, o micróbio destrói o próprio DNA quando sua comida acaba, evitando que genes estranhos contaminem o ambiente.
A versão kamikaze da Saccharomyces cerevisiae, a levedura da cerveja, usada há milênios na produção de álcool, já rendeu um pedido de patente no Inpi (Instituto Nacional da Propriedade Industrial) e um prêmio concedido pelo governo do Estado de São Paulo a suas inventoras, Ana Clara Guerrini Schenberg e Andrea Balan.
As pesquisadoras, do Instituto de Ciências Biomédicas da USP, vão dividir cerca de R$ 7.000 do Prêmio Governador do Estado e acreditam ter desenvolvido um sistema promissor de biossegurança: de acordo com Schenberg, ele pode ser aplicado a qualquer microrganismo transgênico e é simples de ser posto em prática.
O trabalho também é o primeiro a desenvolver um sistema de segurança antitransgênicos para micróbios eucariontes (dotados de uma célula com núcleo, como as de animais e plantas).
"Já existiam coisas feitas há mais tempo para bactérias", conta Schenberg. Mas, na maioria dos casos, o alvo da autodestruição era a membrana da célula transgênica. O processo era uma boa forma de matar o organismo modificado, mas não atacava a fonte do problema: o DNA, que podia continuar solto no ambiente e contaminar outros seres vivos.
Para fugir desse inconveniente, a dupla foi buscar um gene da bactéria Serratia marcescens, que codifica uma substância devoradora de DNA. Trata-se de uma nuclease -enzima que quebra em pedacinhos os ácidos nucleicos, como o DNA e o RNA. "Na natureza, a bactéria joga essa enzima para fora, talvez para degradar esses ácidos e se alimentar deles", explica Schenberg.
A idéia era usar essa propriedade para eliminar o DNA transgênico. Para isso, as pesquisadoras tiraram do gene bacteriano as letras químicas que codificam a ordem para lançar a enzima para fora quando estivesse pronta -era preciso que o material genético dentro da célula fosse destruído.

Direto no alvo
A versão "corrigida" do gene recebeu, então, o que os geneticistas chamam de um promotor - uma sequência de DNA que determina quando e como aquele gene vai funcionar. O promotor brecava a produção da enzima, que só poderia ser sintetizada quando não houvesse mais glicose -o tipo mais simples de açúcar- nas redondezas.
Essa mudança foi feita exatamente porque o serviço mais comum realizado pela S. cerevisiae é se alimentar de glicose e fabricar, como subproduto, o álcool. Em condições normais, ela se multiplica até que acabe o estoque de açúcar. Contudo, com o DNA da bactéria inserido nela, o fim do almoço era também o fim da vida: a nuclease literalmente digeria a levedura por dentro.
A técnica funcionou quando a sequência sabotadora foi colocada solta no núcleo da S. cerevisiae, mas as cientistas conseguiram inseri-la diretamente num cromossomo da levedura. Essas estruturas carregam a informação genética original do micróbio -o que significa que o gene estranho foi integrado a ele.

Multiuso
A estratégia poderia ser útil não apenas numa cepa transgênica da levedura que produzisse álcool de forma mais eficaz. A S. cerevisiae é muito utilizada para fabricar substâncias para a indústria farmacêutica -a vacina mais comum contra o vírus da hepatite C é feita por ela, assim como parte da insulina usada hoje por pessoas com diabetes.
Schenberg afirma que cepas de laboratório e industriais da levedura foram testadas com igual sucesso. O mesmo aconteceu quando elas foram submetidas a uma liberação simulada no solo, que é normalmente pobre em glicose. E sem sobras genéticas: "O efeito é fulminante, o DNA não tem tempo de mudar", diz a pesquisadora.
Membro da CTNBio (Comissão Técnica Nacional de Biossegurança), Schenberg diz que vai recomendar o procedimento para controlar transgênicos. "Como é que você sabe que aquilo [o transgene] não vai escapulir? Embutindo essa trava de segurança você controla isso", afirma.


Próximo Texto: Panorâmica - Política científica: Síncrotron ganha R$ 2 mi para ampliação
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.