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Ciência em Dia
Challenger e Columbia
Marcelo Leite
editor de Ciência
Sete tripulantes mortos de cada vez,
dois ônibus espaciais destruídos, 17
anos de intervalo e uma só mensagem, se
é que se pode falar em mensagem no caso de irrupções tão ofuscantes do absurdo: mesmo a mais alta das tecnologias é
incapaz de abolir o acaso e a catástrofe.
Há também uma outra forma, alarmante e alarmista, de interpretar o desastre ocorrido: quanto mais complexa a
tecnologia, ou o sistema tecnológico em
questão (como a imensa máquina de engenharia da Nasa, capaz de pôr em órbita
naves recuperáveis de 104 toneladas),
mais provável -inevitável, seria o caso
de dizer- é a ocorrência do Acidente.
"Acidente" com A maiúsculo, sim. É
nesse tom grandiloquente que se expressa um filósofo polêmico do vertiginoso
mundo de hoje, Paul Virilio. Para ele, o
século 20 foi marcado pelo Acidente Nuclear (Hiroshima, Nagasaki, Chernobyl)
e o 21 o será pelo Acidente Genético.
Quem se sentir propenso a discordar deve ler antes o que Virilio tem a dizer, pois
pode soar alucinado, mas sua forma peculiar de se exprimir não deixa de ser
uma tentativa de encontrar palavras
mais condizentes com a magnitude dos
eventos que nosso tempo testemunhou.
Li dele apenas a edição americana de
um livro tão estranho e paradoxal quanto seu título, "Crepuscular Dawn" (Aurora Crepuscular), na verdade uma entrevista-diálogo com a jornalista Sylvere
Lotringer. Na retórica nem sempre esclarecedora mas eloquente dos pensadores
franceses contemporâneos, Virilio diz
coisas assim: "O acidente é a nova forma
de guerra. Está substituindo a revolução
e a guerra. Sarajevo desencadeou a Primeira Guerra Mundial. Nova York é o
que foi Sarajevo. O 11 de Setembro abriu
a caixa de Pandora. A primeira guerra da
globalização será o acidente global, o acidente total, incluindo o acidente da ciência. E ele está a caminho".
Não há obviamente um vínculo direto
entre a desintegração do Columbia e a
iminente guerra contra o Iraque, mas a
coincidência temporal -que não passa
disso, de coincidência- pode ajudar a
refletir se não há ligações mais profundas
entre uma coisa e outra. Além da comoção mórbida e patriótica nos EUA, claro.
Um tema de contato possível é o da
inevitabilidade do desastre. O sociólogo
da ciência e da tecnologia Thomas Hughes fala em "momento" (inércia, por
assim dizer) dos sistemas tecnológicos,
os grandes complexos industrial-tecnológicos e de pesquisa que se formam em
torno de inovações de grande impacto.
Nessa categoria caberiam tanto a energia
elétrica quanto as telecomunicações, o
petróleo e a indústria automobilística, a
engenharia genética e a engenharia aerospacial (foguetes e mísseis).
A idéia é que, a partir de um certo ponto de complexidade e de capital investido, o sistema passa a comportar-se e a
evoluir como que por conta própria, indiferente às necessidades propriamente
humanas (ou mesmo em contradição
com elas), que estavam na base da inovação. A tecnologia, assim, pode voltar-se
contra as pessoas, não tanto por uma
perversidade inerente, essencial, mas em
razão da lógica interna da organização
social que se cristaliza em torno dela.
Pode ser que tenha ido longe demais, a
partir da tragédia do Columbia. Acidentes acontecem, afinal. Mas é prudente
parar para pensar se a frequência deles,
na Nasa, decorre das forças extraordinárias que arrisca domar ou de sucessivos
cortes de gastos que possam ter afetado
padrões de segurança. Ou ambos.
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br
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