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São Paulo, domingo, 09 de fevereiro de 2003

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Ciência em Dia

Challenger e Columbia

Marcelo Leite
editor de Ciência

Sete tripulantes mortos de cada vez, dois ônibus espaciais destruídos, 17 anos de intervalo e uma só mensagem, se é que se pode falar em mensagem no caso de irrupções tão ofuscantes do absurdo: mesmo a mais alta das tecnologias é incapaz de abolir o acaso e a catástrofe.
Há também uma outra forma, alarmante e alarmista, de interpretar o desastre ocorrido: quanto mais complexa a tecnologia, ou o sistema tecnológico em questão (como a imensa máquina de engenharia da Nasa, capaz de pôr em órbita naves recuperáveis de 104 toneladas), mais provável -inevitável, seria o caso de dizer- é a ocorrência do Acidente.
"Acidente" com A maiúsculo, sim. É nesse tom grandiloquente que se expressa um filósofo polêmico do vertiginoso mundo de hoje, Paul Virilio. Para ele, o século 20 foi marcado pelo Acidente Nuclear (Hiroshima, Nagasaki, Chernobyl) e o 21 o será pelo Acidente Genético. Quem se sentir propenso a discordar deve ler antes o que Virilio tem a dizer, pois pode soar alucinado, mas sua forma peculiar de se exprimir não deixa de ser uma tentativa de encontrar palavras mais condizentes com a magnitude dos eventos que nosso tempo testemunhou.
Li dele apenas a edição americana de um livro tão estranho e paradoxal quanto seu título, "Crepuscular Dawn" (Aurora Crepuscular), na verdade uma entrevista-diálogo com a jornalista Sylvere Lotringer. Na retórica nem sempre esclarecedora mas eloquente dos pensadores franceses contemporâneos, Virilio diz coisas assim: "O acidente é a nova forma de guerra. Está substituindo a revolução e a guerra. Sarajevo desencadeou a Primeira Guerra Mundial. Nova York é o que foi Sarajevo. O 11 de Setembro abriu a caixa de Pandora. A primeira guerra da globalização será o acidente global, o acidente total, incluindo o acidente da ciência. E ele está a caminho".
Não há obviamente um vínculo direto entre a desintegração do Columbia e a iminente guerra contra o Iraque, mas a coincidência temporal -que não passa disso, de coincidência- pode ajudar a refletir se não há ligações mais profundas entre uma coisa e outra. Além da comoção mórbida e patriótica nos EUA, claro.
Um tema de contato possível é o da inevitabilidade do desastre. O sociólogo da ciência e da tecnologia Thomas Hughes fala em "momento" (inércia, por assim dizer) dos sistemas tecnológicos, os grandes complexos industrial-tecnológicos e de pesquisa que se formam em torno de inovações de grande impacto. Nessa categoria caberiam tanto a energia elétrica quanto as telecomunicações, o petróleo e a indústria automobilística, a engenharia genética e a engenharia aerospacial (foguetes e mísseis).
A idéia é que, a partir de um certo ponto de complexidade e de capital investido, o sistema passa a comportar-se e a evoluir como que por conta própria, indiferente às necessidades propriamente humanas (ou mesmo em contradição com elas), que estavam na base da inovação. A tecnologia, assim, pode voltar-se contra as pessoas, não tanto por uma perversidade inerente, essencial, mas em razão da lógica interna da organização social que se cristaliza em torno dela.
Pode ser que tenha ido longe demais, a partir da tragédia do Columbia. Acidentes acontecem, afinal. Mas é prudente parar para pensar se a frequência deles, na Nasa, decorre das forças extraordinárias que arrisca domar ou de sucessivos cortes de gastos que possam ter afetado padrões de segurança. Ou ambos.

E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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