São Paulo, domingo, 09 de março de 2008

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O verme, interrompido

Brasileiros usam molécula-irmã do DNA para tratar infecção por esquistossomo em cobaias

RAFAEL GARCIA
DA REPORTAGEM LOCAL

Um grupo de pesquisadores brasileiros esbarrou em um sucesso inesperado no teste de uma nova classe de drogas para tratar a esquistossomose, um dos tipos mais agressivos de verminose. Usando um simples segmento de RNA -a molécula "prima" do DNA presente em todas as células- o geneticista Tiago Campos Pereira conseguiu matar 27% da população do verme Schistosoma dentro de camundongos infectados, em testes preliminares.
Integrante do grupo de Iscia Cendes, na Unicamp (Universidade de Campinas), Pereira é especialista em uma técnica conhecida como interferência de RNA. Criada há dez anos pelos ganhadores do Nobel de Medicina de 2006, Craig Mello e Andrew Fire, a abordagem conhecida pela sigla RNAi consiste em inserir uma fita dupla desse tipo de molécula numa determinada célula para bloquear a ativação de um gene.
Desde sua descoberta, a técnica vem sendo usada para investigar o papel de determinados trechos de genoma. Recentemente, possíveis aplicações médicas do RNAi têm despontado, e alguns cientistas já procuram usar a técnica para atacar vários vírus. Nenhum outro tipo de parasita, porém, tinha se mostrado alvo possível.
E uma curiosidade no sucesso de Pereira e Cendes no combate à esquistossomose em cobaias é que nenhum dos dois tinha experiência em parasitologia. No início, o que existia eram cientistas com uma cura em busca de uma doença.
"Estávamos interessados em encontrar o modelo experimental de uma doença humana no qual pudéssemos aplicar o RNAi, e aí é que a esquistossomose surgiu", conta Cendes. "Apesar de ser uma doença para a qual já existe um tratamento -quimioterápicos- essas drogas não são isentas de efeitos colaterais, e já começam a existir parasitas que são resistentes à terapia."
Para lidar com aspectos conhecidos da doença, os geneticistas se juntaram aos parasitologistas Eliana Zanotti-Magalhães e Luiz Augusto Magalhães, também da Unicamp. E a parceria entre diferentes áreas médicas rendeu resultado.

Molécula nua
Não que alguém esperasse grande coisa já no início. Apesar de terem experiência com a técnica, fizeram um primeiro experimento apenas em espírito de sondagem, tanto que aplicaram apenas uma injeção de 5 microgramas de solução de RNA nos roedores infectados.
"A gente simplesmente injeta uma solução de RNA na corrente sangüínea do camundongo através da veia, uma estratégia bem barata", diz Pereira. "Não teve preparação nenhuma. O RNA vai nu, mesmo."
A molécula escolhida para atacar o verme desativa um gene essencial do animal, causando um colapso total no seu sistema metabólico. Segundo Pereira, uma redução de 27% na população do verme em um roedor infectado com uma dose tão baixa da droga foi um resultado inesperado. A simples repetição da aplicação da droga, afirmam, elevaria a eficácia.
"Além disso a molécula, da maneira como a injetamos, é pouco resistente na circulação sanguínea e se degrada muito rápido", diz Cendes. "Existem modificações químicas que podem torná-la um pouco mais resistente na corrente sangüínea e atingir um numero maior de vermes dentro do fígado."

Iguais diferentes
O segredo do tratamento elaborado por Cendes é que o gene escolhido para ser atacado pela técnica de RNAi tem papel importante na síntese de uma proteína fundamental na produção do DNA do verme. Sabotar uma proteína de parasitas com fármacos comuns pode ser uma estratégia difícil, já que elas podem prejudicar outras proteínas similares do hospedeiro (o doente) também.
"No nosso caso, as proteínas eram iguais no parasita, no camundongo, e no homem", explica Pereira. "Mas apesar de a proteína ser idêntica, o RNA que codifica essas proteínas é bem diferente." Essa diferença, diz, permitiu o grupo sabotar apenas proteínas do verme.
Outra vantagem de usar o RNA é que a ação da molécula é totalmente conhecida: ela esta presente em toda célula ativa de todo ser vivo. Seu papel é traduzir o código do DNA em ação. O vermífugo praziquantel -usado hoje para a esquistossomose- ainda não teve seu mecanismo de ação elucidado.
"E existe efeito colateral." diz Cendes. "A droga acaba sendo tóxica para o paciente, que não faz o tratamento completo." O estudo de Cendes e colegas será publicado na revista "Experimental Parasitology".


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