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Marcelo Leite
Fim da privacidade mental?
Criar um decodificador visual
é viável, mostra estudo
Quase 20 anos atrás, uma pediatra bem-humorada pôs uma
de minhas filhas em pânico.
Otoscópio na mão, examinou o interior do ouvido -agora se diz orelha-
da garota e anunciou que estava conseguindo ler tudo que ela pensava. A
menina deu um salto, indignada como
se alguém a espiasse pela fechadura.
A intimidade, tão necessária para a
vida social quanto a massa dos corpos
para a mecânica celeste, pode estar
com os dias contados. É o que sugere
um artigo científico recente sobre seu
último reduto, o cérebro. A contagem
regressiva será longa, e parece confortador prever que não chegará a zero
antes de a maioria de nós morrer.
O trabalho foi publicado eletronicamente na quinta-feira no periódico
científico britânico "Nature". Uma
equipe liderada por Jack Gallant, da
Universidade da Califórnia em Berkeley, abriu a caixa-preta do córtex visual -área do cérebro dedicada a processar informação proveniente das
nossas retinas tão fatigadas.
Primeiro, o grupo treinou um computador para associar fotos com padrões de atividade cerebral no córtex
visual, medidos por ressonância magnética funcional (fRMI), enquanto
Kendrick Kay e Thomas Naselaris
-outros dois autores do artigo- as
contemplavam. Usaram-se 1.750 fotografias em branco-e-preto de temas
naturais, como flores.
Depois, ambos foram confrontados
com 120 fotos nunca antes vistas. Registraram-se os novos padrões cerebrais. Desafiou-se então o programa
estatístico, que divide as áreas cerebrais em centenas de cubinhos para
medir sua atividade, a adivinhar qual
foto correspondia a cada padrão.
No caso de Naselaris, a máquina
acertou 110 das 120 imagens (92%).
No de Kay, em 86 (72%). Estudos similares, no passado, só conseguiam
realizar o truque com imagens artificiais simples (como um xadrez de
quadrados pretos e brancos).
Ao menos em princípio, Gallant e
sua trupe demonstraram que é possível criar o que chamam de "decodificador visual universal". Diante de
uma imagem de ressonância do córtex
visual, um computador poderia identificar e, no limite, sintetizar a imagem contemplada.
Eles dizem no artigo científico que
tal dispositivo teria várias utilidades.
Investigar as diferenças de percepção
e atenção entre as pessoas é a mais
inócua. Ter acesso ao conteúdo visual
de processos puramente mentais,
bem menos.
Sonhos, delírios e fantasias nunca
mais estariam a salvo. O convívio social se tornaria um inferno de transparência, em que sentiríamos saudades das chamas e caldeirões ferventes.
Se todas as imagens que passam por
nossas cabeça vissem a luz do dia...
Claro que para isso haveria que miniaturizar aparelhos de fRMI e utilizá-los à distância, como microfones
direcionais. Antes, ainda, inventar um
jeito de transformar os padrões de atividade no córtex visual em imagens
inéditas. Ou melhor, em filmes, porque ninguém vê a vida passar por instantâneos sucessivos.
Tudo isso são detalhes. Não há limites para os sonhos, os delírios e as fantasias da ciência. A diferença é que ela
tem uma compulsão inata por realizá-los, um pedaço de cada vez. Gallant e
companhia deram um pequeno passo
na direção do fantástico decodificador
visual universal.
Nem por isso deixaram de manter
os pés no aqui e no agora. "Os autores
acreditam fortemente que ninguém
deveria ser submetido, involuntária
ou ocultamente, ou sem consentimento informado pleno, a qualquer tipo de processo de leitura do cérebro",
ressalvaram num comunicado.
MARCELO LEITE é autor de "Promessas do Genoma" (Editora da Unesp, 2007) e de "Brasil, Paisagens Naturais -
Espaço, Sociedade e Biodiversidade nos Grandes Biomas
Brasileiros" (Editora Ática, 2007). Blog: Ciência em Dia
(www.cienciaemdia.zip.net). E-mail: cienciaemdia@uol.com.br
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