São Paulo, domingo, 09 de março de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Marcelo Leite

Fim da privacidade mental?

Criar um decodificador visual é viável, mostra estudo

Quase 20 anos atrás, uma pediatra bem-humorada pôs uma de minhas filhas em pânico. Otoscópio na mão, examinou o interior do ouvido -agora se diz orelha- da garota e anunciou que estava conseguindo ler tudo que ela pensava. A menina deu um salto, indignada como se alguém a espiasse pela fechadura.
A intimidade, tão necessária para a vida social quanto a massa dos corpos para a mecânica celeste, pode estar com os dias contados. É o que sugere um artigo científico recente sobre seu último reduto, o cérebro. A contagem regressiva será longa, e parece confortador prever que não chegará a zero antes de a maioria de nós morrer.
O trabalho foi publicado eletronicamente na quinta-feira no periódico científico britânico "Nature". Uma equipe liderada por Jack Gallant, da Universidade da Califórnia em Berkeley, abriu a caixa-preta do córtex visual -área do cérebro dedicada a processar informação proveniente das nossas retinas tão fatigadas.
Primeiro, o grupo treinou um computador para associar fotos com padrões de atividade cerebral no córtex visual, medidos por ressonância magnética funcional (fRMI), enquanto Kendrick Kay e Thomas Naselaris -outros dois autores do artigo- as contemplavam. Usaram-se 1.750 fotografias em branco-e-preto de temas naturais, como flores.
Depois, ambos foram confrontados com 120 fotos nunca antes vistas. Registraram-se os novos padrões cerebrais. Desafiou-se então o programa estatístico, que divide as áreas cerebrais em centenas de cubinhos para medir sua atividade, a adivinhar qual foto correspondia a cada padrão.
No caso de Naselaris, a máquina acertou 110 das 120 imagens (92%). No de Kay, em 86 (72%). Estudos similares, no passado, só conseguiam realizar o truque com imagens artificiais simples (como um xadrez de quadrados pretos e brancos).
Ao menos em princípio, Gallant e sua trupe demonstraram que é possível criar o que chamam de "decodificador visual universal". Diante de uma imagem de ressonância do córtex visual, um computador poderia identificar e, no limite, sintetizar a imagem contemplada. Eles dizem no artigo científico que tal dispositivo teria várias utilidades.
Investigar as diferenças de percepção e atenção entre as pessoas é a mais inócua. Ter acesso ao conteúdo visual de processos puramente mentais, bem menos.
Sonhos, delírios e fantasias nunca mais estariam a salvo. O convívio social se tornaria um inferno de transparência, em que sentiríamos saudades das chamas e caldeirões ferventes. Se todas as imagens que passam por nossas cabeça vissem a luz do dia...
Claro que para isso haveria que miniaturizar aparelhos de fRMI e utilizá-los à distância, como microfones direcionais. Antes, ainda, inventar um jeito de transformar os padrões de atividade no córtex visual em imagens inéditas. Ou melhor, em filmes, porque ninguém vê a vida passar por instantâneos sucessivos.
Tudo isso são detalhes. Não há limites para os sonhos, os delírios e as fantasias da ciência. A diferença é que ela tem uma compulsão inata por realizá-los, um pedaço de cada vez. Gallant e companhia deram um pequeno passo na direção do fantástico decodificador visual universal.
Nem por isso deixaram de manter os pés no aqui e no agora. "Os autores acreditam fortemente que ninguém deveria ser submetido, involuntária ou ocultamente, ou sem consentimento informado pleno, a qualquer tipo de processo de leitura do cérebro", ressalvaram num comunicado.


MARCELO LEITE é autor de "Promessas do Genoma" (Editora da Unesp, 2007) e de "Brasil, Paisagens Naturais - Espaço, Sociedade e Biodiversidade nos Grandes Biomas Brasileiros" (Editora Ática, 2007). Blog: Ciência em Dia (www.cienciaemdia.zip.net). E-mail: cienciaemdia@uol.com.br

Texto Anterior: O verme, interrompido
Próximo Texto: Marcelo Gleiser: Robôs tropicais
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.