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A reforma da natureza
Área da biologia sintética, que prevê alterar radicalmente organismos, começa a trazer dividendos industriais
REINALDO JOSÉ LOPES
DA REPORTAGEM LOCAL
Quem ainda se arrepia só de pensar
em soja transgênica talvez devesse
repensar suas
preocupações. Em vez de um
ou outro gene estranho inserido em vegetais que, de resto,
são prosaicos, que tal organismos transformados da cabeça
aos pés, otimizados para fazer
todo tipo de serviço industrial
ou médico? A ideia não tem nada de impossível. Aliás, tais organismos já estão por aí.
Temores um tanto luddistas
à parte, é nesse tipo de iniciativa, conhecido pelo nome de
biologia sintética, que algumas
das grandes esperanças de
avanço econômico e melhora
das condições ambientais do
planeta estão sendo depositadas. E, embora ainda haja muito a ser feito, é indiscutível que
a abordagem já esteja dando
resultados viáveis economicamente, afirma Gonçalo Amarante Guimarães Pereira, pesquisador da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas)
que trabalha no ramo.
"Eu estive numa empresa
nos Estados Unidos recentemente, e o plástico de que é feita a caneta que eu trouxe de lá
foi produzido via biologia sintética", diz Pereira. "Então, a
resposta é sim, já é uma realidade", enfatiza ele.
Um artigo recente na revista
científica "Nature Reviews Genetics" confirma a tendência.
Para os autores, Ahmad Khalil
e James Collins, da Universidade de Boston (EUA), o campo
"chegou à maioridade". Para a
dupla, uma das principais utilidades dos organismos sintéticos -por enquanto, micróbios
como bactérias e leveduras- é
realizar operações lógicas, como se fossem computadores
biológicos. Pereira, no entanto,
prefere outra forma de explicar
a área: trata-se de fazer com
que os organismos de interesse
se comportem de maneira que
jamais seria "programada" neles pela evolução.
Só para elas
"Um exemplo são as leveduras com que trabalho. Elas produzem etanol, claro, que nós
usamos como combustível,
mas elas fazem isso para combater bactérias, não pelas razões que nos interessam."
É nesse ponto que as diferenças entre biologia sintética e
simples criação de transgênicos ficam mais claras. "Você
usa as mesmas técnicas de biologia molecular, mas o propósito é diferente", diz o pesquisador da Unicamp.
Em vez de inserir um ou dois
genes na espécie que se quer
modificar (o DNA que determina a bioluminescência de uma
água-viva para fazer um camundongo brilhar no escuro,
por exemplo), a ideia é embutir
na criatura-alvo os genes de
uma ou mais vias metabólicas
inteiras. Tais vias correspondem a um conjunto de genes
(ou melhor, das proteínas codificadas por eles) atuando em
cascata, como um sistema, modificando de forma significativa
o metabolismo do organismo.
Glicerol à vontade
Pereira dá outro exemplo de
seu próprio trabalho: as mesmas leveduras que produzem
etanol também fazem glicerol,
mas em quantidades diminutas
-apenas 2 gramas por litro.
Uma mexida geral nas vias metabólicas do fungo microscópico, "desligando" alguns genes e
aumentando a ativação de outros, permite aumentar a produção de glicerol para 46 gramas por litro, algo que provavelmente nem a seleção natural
mais feroz seria capaz de produzir em milhões de anos.
Um dos sonhos de quem trabalha com biologia sintética é
dar um passo além e permitir
que os organismos de escolha
produzam substâncias totalmente alheias a seu metabolismo natural -coisa que o plástico da caneta americana já mostrou ser possível, entre outros
exemplos. A longo prazo, seria
possível criar uma "petroquímica biológica", na qual derivados de petróleo seriam totalmente substituídas por produtos de leveduras ou bactérias
engenheiradas, diz Pereira.
Outro grande objetivo é otimizar a produção de biocombustíveis -em seu artigo, Khalil e Collins apontam, por
exemplo, que seria possível
buscar uma escala industrial
para formas mais energéticas
de álcool que o etanol, como o
butanol, modificando os organismos fermentadores mais
utilizados hoje. E, claro, já há
progressos na área médica, como protótipos de vírus modificados para atacar de forma específica células cancerosas ou
bactérias no organismo.
Apesar do fascínio desses
avanços, não seria exagero falar
em "vida sintética"? Afinal,
poucos pesquisadores falam
em montar criaturas totalmente artificiais, compostas, por
exemplo, de aminoácidos que
hoje não são encontrados na
natureza. "Não acho que isso
seja necessário. Ninguém deixa
de escrever um livro novo por
falta de letras no alfabeto, mas
sim por falta de ideias. É a mesma coisa: os elementos básicos
que temos na mão são mais do
que suficientes para fazermos
coisas fantásticas", diz Pereira.
Para ele, a cadeia produtiva do
etanol no Brasil deve dar ao
país vantagens competitivas
para avançar na área.
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