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Micro/Macro
Definindo o ser humano
Marcelo Gleiser
especial para a Folha
No dia 25 de novembro, um grupo de
médicos e cientistas norte-americanos anunciou haver conseguido, pela
primeira vez na história, clonar um embrião humano a partir da fusão de uma
única célula adulta com um óvulo. Após
algumas horas, o clone chegou a conter
seis células, antes de cessar o seu desenvolvimento. Digo "cessar o seu desenvolvimento" porque não me é claro como
expressar o fato de que o conjunto de seis
células parou de se reproduzir. Será que
devo dizer que o embrião morreu?
Esse assunto é extremamente controverso e difícil de ser tratado. Não é óbvio
para a maioria dos cientistas que uma
massa de seis células deva ser chamada
de "embrião" ou que essa massa "morra" ao cessar a sua reprodução. O que ficou claro é que vários grupos privados
estão tentando clonar seres humanos, ignorando o debate sobre as consequências éticas de suas experiências.
Imediatamente após a Advanced Cell
Technology (ACT, ou "Tecnologia Celular Avançada") anunciar sua descoberta,
várias outras companhias afirmaram
também já ter obtido "embriões". Por
exemplo, cientistas da companhia Clonaid, da Califórnia, que, entre outras coisas, defende a existência de Ovnis, afirmam ter conseguido chegar a clones
com oito células, duas a mais do que os
cientistas da ACT. Segundo a porta-voz
da Clonaid, assim que a patente de seus
métodos for autenticada, a companhia
divulgará os resultados publicamente.
O italiano Severino Antinori afirmou
ter clonado um bebê que nascerá até o
Natal. O simbolismo de ter o primeiro
bebê clonado nascendo no Natal não poderia ser mais irresponsável.
À parte toda a controvérsia ética sobre
a clonagem de seres humanos, existe
também a controvérsia científica: os resultados da ACT mostram o quanto é difícil clonar embriões humanos. Dos 19
experimentos, apenas 3 se desenvolveram além de uma célula, e nenhum passou de seis. O objetivo dos cientistas da
ACT, como o da maioria dos cientistas
que trabalham nessa área, não é a clonagem de um ser humano, mas o desenvolvimento de embriões até o estágio em
que possam fornecer as células-tronco,
capazes de se transformar nos vários órgãos do corpo humano. Para tal, basta
que o conjunto de células chegue a formar um blastocisto, embrião com algumas centenas de células. Apesar de os resultados da ACT estarem longe de atingir
seu objetivo, estimularam um debate ético e político sério.
As linhas divisórias do conflito são bastante claras; líderes religiosos e políticos
conservadores condenam qualquer clonagem envolvendo células humanas,
alegando que extrair células-tronco de
um blastocisto é equivalente a assassinar
um ser humano. Ou seja, que um conjunto de 150 células tem os mesmos direitos legais à vida de um feto de três meses ou de um ser adulto.
Os mais liberais alegam que os benefícios médicos do uso dos órgãos criados a
partir das células-tronco justificam a clonagem de embriões humanos. Isso não
significa que esses grupos sejam a favor
da clonagem de seres humanos: os blastocistos são destruídos no processo de
extração das células-tronco. A questão é
se eles têm ou não direito à vida.
A ciência nos força a repensar nossos
valores morais e éticos. A pílula foi e é
vista com desdém pela Igreja Católica,
assim como o aborto, mas as pessoas
usam a pílula e praticam abortos. Apesar
da resistência contra o uso da energia
atômica e contra a proliferação de armas
nucleares, centenas de usinas operam
hoje em dezenas de países, enquanto o
estoque de bombas é suficiente para aniquilar a vida sobre a Terra diversas vezes.
Meu ponto é que a censura de certos
grupos, sejam liberais ou conservadores,
jamais vai conter o desenvolvimento da
ciência, especialmente quando atende a
interesses políticos ou comerciais. A clonagem de embriões humanos, ao menos
para a extração de células-tronco, é uma
questão de tempo. Os tecidos e órgãos
obtidos dessas células vão salvar ou melhorar a vida de milhões de pessoas que
sofrem de mal de Parkinson, Alzheimer
e outras doenças sem cura.
Já a clonagem de um ser humano completo é muito mais complexa, clinicamente inútil, e não parece óbvio que possa ser atingida a curto prazo. Certamente, não antes do Natal. Cabe aos cientistas
e à sociedade criar um diálogo aberto para que desenvolvimentos nessa área não
ocorram em segredo. Porque me parece
que eles são inevitáveis.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do
Dartmouth College, em Hanover (Estados Unidos),
e autor do livro "O Fim da Terra e do Céu"
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