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"Nosso cérebro foi forjado por ambientes passados"
Cientista nega determinismo biológico, mas diz que vários comportamentos atuais refletem adaptações a um mundo desaparecido
Folha - A sra. sente essa necessidade entre escritores, por exemplo?
Cosmides - Ela existe mais entre
as pessoas que trabalham com
crítica literária. Há filósofos
muito interessados nessas
idéias. Pode-se pensar numa
racionalidade ecológica, numa
mente que está bem estruturada para resolver determinados
problemas adaptativos que os
nossos ancestrais caçadores-coletores enfrentavam. Também estou muito empolgada
com o trabalho que estamos fazendo com a rede brasileira [de
psicologia evolutiva]. Os psicólogos sociais descobriram que
as pessoas parecem notar e recordar a raça dos indivíduos
que encontram, junto com o sexo e a idade deles. O sexo e a
idade fazem sentido do ponto
de vista da evolução, mas a raça? Bom, para começar, trata-se de um conceito estranho.
Além disso, os caçadores-coletores são nômades e se movimentam a pé. Eles não viajam
tão longe! Dificilmente...
Folha - Dificilmente têm a chance
de se deslocar o bastante para encontrar pessoas diferentes deles...
Cosmides - ... que possam ser
consideradas de outra raça.
Exatamente. Como é que a seleção natural poderia criar um
mecanismo para codificar um
aspecto do mundo que não
existia para os nossos ancestrais caçadores-coletores? Então, o que nós achamos é que
deva existir um subproduto,
um efeito colateral de outros
mecanismos, que acreditamos
ser ligados à idéia de coalizão,
usados para entender o conceito de "nós e eles", cooperação
entre três ou mais indivíduos
para alcançar um objetivo comum e compartilhar os benefícios resultantes. Para os nossos
ancestrais isso às vezes poderia
ser positivo, como uma caçada
cooperativa ou a divisão de alimentos, e às vezes negativo, como atacar um outro grupo.
Nossa hipótese era que a percepção de raça teria a ver com
esses padrões de cooperação e
competição. Um subproduto
disso seria fazer as pessoas codificarem a raça dos outros,
porque, pelo menos nos EUA,
existem padrões de colaboração e competição que estão relacionados com raça, já que não
se trata de uma sociedade integrada do ponto de vista racial.
Folha - Nesse ponto, o Brasil não é
tão diferente assim dos EUA...
Cosmides - Pelos dados preliminares brasileiros parece que as
coisas não são tão diferentes.
Então, nós achávamos que, se
você tivesse duas coalizões,
mas a raça não ajudasse a predizer a qual delas se aliar, isso
deveria diminuir o grau com
que as pessoas notam e recordam a raça das outras. E isso se
mostrou verdadeiro. É claro
que, nesse experimento, como
em qualquer outro, existem interpretações alternativas -razão pela qual eu repito meus
experimentos muitas, muitas
vezes, coisa que os nossos críticos não parecem notar.
Folha - A sra. mencionou o interesse de pessoas nesse tipo de trabalho, mas ainda há muita resistência
a essas idéias, inclusive do ponto de
vista político, não?
Cosmides - Sim, e é por isso que
os estudantes são a esperança
para o futuro, porque eles não
têm pré-compromissos. As
pessoas também estão se tornando mais sofisticadas, estão
percebendo que não se trata de
determinismo biológico mas de
tentar entender o design da
mente, incluindo seu desenvolvimento e as maneiras como o
ambiente afeta o desenvolvimento mental. Por exemplo, eu
sou míope. Neste momento
[Cosmides tira os óculos], eu
não consigo ver você. Agora [ela
coloca os óculos de novo], eu
consigo ver você. Mudança ambiental -das grandes, aliás. No
entanto, há uma base genética
para quem fica míope e quem
não fica. Os caçadores-coletores não ficam míopes. Nós temos um mecanismo que ajusta
nossa visão à distância focal
média, mas o problema é que,
em sociedades como a nossa,
estamos lendo de perto, assistindo à TV de perto, então a distância focal média encurta. A
assim um tipo de variação genética que nem se expressa entre caçadores-coletores acaba
se expressando entre nós.
Folha - E quanto ao papel do acaso,
ou do aparecimento de características que não têm uma função evolutiva óbvia num primeiro momento?
Cosmides - Bem, toda a questão
da percepção racial é um efeito
colateral, para começar. Eu
acredito firmemente que não
existe nenhum mecanismo na
mente diretamente adaptado
para a percepção de raça. E, especialmente quando se considera o mundo moderno, há
montes de coisas que fazemos e
que não são adaptativas. Mas
muitas delas são reflexos de
adaptações a um mundo já desaparecido.
Folha - Outra crítica à psicologia
evolutiva é o uso de modelos como
caçadores-coletores e macacos para
inferir sobre as pressões evolutivas
que teriam predominado entre os
ancestrais dos humanos.
Cosmides - Nós evitamos discussões do tipo "os humanos
são parecidos com os babuínos". A maioria dos psicólogos
acaba não olhando para os ambientes passados, e às vezes assume que estamos "adaptados"
ao mundo moderno (escrever,
digitar, usar geladeiras etc.). É
claro que existem muitas coisas
que nunca poderemos descobrir nos mínimos detalhes, mas
muitas coisas nós sabemos: nada de Estados nacionais, comunicação de massa, predadores
eram um problema etc. Além
disso, lembre-se de que os nossos cérebros e corpos de hoje
foram forjados pelos ambientes passados, e por isso guardam pistas deles. Por exemplo:
nós não produzimos vitaminas
que eram comuns na nossa dieta; não produzimos a vitamina
B12, mas precisamos dela; a
principal fonte alimentar de
B12 é a carne; portanto, nossos
ancestrais devem ter comido
algum tipo de carne.
Folha - A idéia de um forte componente inato na mente humana soa
fatalista para muita gente, mas a
sra. diz que discorda. Por quê?
Cosmides - Certamente eu não
sou fatalista! Somente entendendo os mecanismos da mente é que você pode esperar melhorar a condição humana. Isso
é especialmente importante
quando se considera que nós
temos uma mente cheia de
muitos mecanismos especializados em determinadas funções. Um exemplo: existem
mecanismos que governam a
agressão grupal (o pensamento
do tipo "nós contra eles"), mas
eles não ficam ativos o tempo
todo. Que condições sociais os
ativam? Se soubermos isso, podemos evitar situações que
causam xenofobia ou guerra.
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