São Paulo, sábado, 10 de junho de 2006

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"Nosso cérebro foi forjado por ambientes passados"

Cientista nega determinismo biológico, mas diz que vários comportamentos atuais refletem adaptações a um mundo desaparecido

Folha - A sra. sente essa necessidade entre escritores, por exemplo?
Cosmides -
Ela existe mais entre as pessoas que trabalham com crítica literária. Há filósofos muito interessados nessas idéias. Pode-se pensar numa racionalidade ecológica, numa mente que está bem estruturada para resolver determinados problemas adaptativos que os nossos ancestrais caçadores-coletores enfrentavam. Também estou muito empolgada com o trabalho que estamos fazendo com a rede brasileira [de psicologia evolutiva]. Os psicólogos sociais descobriram que as pessoas parecem notar e recordar a raça dos indivíduos que encontram, junto com o sexo e a idade deles. O sexo e a idade fazem sentido do ponto de vista da evolução, mas a raça? Bom, para começar, trata-se de um conceito estranho. Além disso, os caçadores-coletores são nômades e se movimentam a pé. Eles não viajam tão longe! Dificilmente...

Folha - Dificilmente têm a chance de se deslocar o bastante para encontrar pessoas diferentes deles...
Cosmides -
... que possam ser consideradas de outra raça. Exatamente. Como é que a seleção natural poderia criar um mecanismo para codificar um aspecto do mundo que não existia para os nossos ancestrais caçadores-coletores? Então, o que nós achamos é que deva existir um subproduto, um efeito colateral de outros mecanismos, que acreditamos ser ligados à idéia de coalizão, usados para entender o conceito de "nós e eles", cooperação entre três ou mais indivíduos para alcançar um objetivo comum e compartilhar os benefícios resultantes. Para os nossos ancestrais isso às vezes poderia ser positivo, como uma caçada cooperativa ou a divisão de alimentos, e às vezes negativo, como atacar um outro grupo. Nossa hipótese era que a percepção de raça teria a ver com esses padrões de cooperação e competição. Um subproduto disso seria fazer as pessoas codificarem a raça dos outros, porque, pelo menos nos EUA, existem padrões de colaboração e competição que estão relacionados com raça, já que não se trata de uma sociedade integrada do ponto de vista racial.

Folha - Nesse ponto, o Brasil não é tão diferente assim dos EUA...
Cosmides -
Pelos dados preliminares brasileiros parece que as coisas não são tão diferentes. Então, nós achávamos que, se você tivesse duas coalizões, mas a raça não ajudasse a predizer a qual delas se aliar, isso deveria diminuir o grau com que as pessoas notam e recordam a raça das outras. E isso se mostrou verdadeiro. É claro que, nesse experimento, como em qualquer outro, existem interpretações alternativas -razão pela qual eu repito meus experimentos muitas, muitas vezes, coisa que os nossos críticos não parecem notar.

Folha - A sra. mencionou o interesse de pessoas nesse tipo de trabalho, mas ainda há muita resistência a essas idéias, inclusive do ponto de vista político, não?
Cosmides -
Sim, e é por isso que os estudantes são a esperança para o futuro, porque eles não têm pré-compromissos. As pessoas também estão se tornando mais sofisticadas, estão percebendo que não se trata de determinismo biológico mas de tentar entender o design da mente, incluindo seu desenvolvimento e as maneiras como o ambiente afeta o desenvolvimento mental. Por exemplo, eu sou míope. Neste momento [Cosmides tira os óculos], eu não consigo ver você. Agora [ela coloca os óculos de novo], eu consigo ver você. Mudança ambiental -das grandes, aliás. No entanto, há uma base genética para quem fica míope e quem não fica. Os caçadores-coletores não ficam míopes. Nós temos um mecanismo que ajusta nossa visão à distância focal média, mas o problema é que, em sociedades como a nossa, estamos lendo de perto, assistindo à TV de perto, então a distância focal média encurta. A assim um tipo de variação genética que nem se expressa entre caçadores-coletores acaba se expressando entre nós.

Folha - E quanto ao papel do acaso, ou do aparecimento de características que não têm uma função evolutiva óbvia num primeiro momento?
Cosmides -
Bem, toda a questão da percepção racial é um efeito colateral, para começar. Eu acredito firmemente que não existe nenhum mecanismo na mente diretamente adaptado para a percepção de raça. E, especialmente quando se considera o mundo moderno, há montes de coisas que fazemos e que não são adaptativas. Mas muitas delas são reflexos de adaptações a um mundo já desaparecido.

Folha - Outra crítica à psicologia evolutiva é o uso de modelos como caçadores-coletores e macacos para inferir sobre as pressões evolutivas que teriam predominado entre os ancestrais dos humanos.
Cosmides -
Nós evitamos discussões do tipo "os humanos são parecidos com os babuínos". A maioria dos psicólogos acaba não olhando para os ambientes passados, e às vezes assume que estamos "adaptados" ao mundo moderno (escrever, digitar, usar geladeiras etc.). É claro que existem muitas coisas que nunca poderemos descobrir nos mínimos detalhes, mas muitas coisas nós sabemos: nada de Estados nacionais, comunicação de massa, predadores eram um problema etc. Além disso, lembre-se de que os nossos cérebros e corpos de hoje foram forjados pelos ambientes passados, e por isso guardam pistas deles. Por exemplo: nós não produzimos vitaminas que eram comuns na nossa dieta; não produzimos a vitamina B12, mas precisamos dela; a principal fonte alimentar de B12 é a carne; portanto, nossos ancestrais devem ter comido algum tipo de carne.

Folha - A idéia de um forte componente inato na mente humana soa fatalista para muita gente, mas a sra. diz que discorda. Por quê?
Cosmides -
Certamente eu não sou fatalista! Somente entendendo os mecanismos da mente é que você pode esperar melhorar a condição humana. Isso é especialmente importante quando se considera que nós temos uma mente cheia de muitos mecanismos especializados em determinadas funções. Um exemplo: existem mecanismos que governam a agressão grupal (o pensamento do tipo "nós contra eles"), mas eles não ficam ativos o tempo todo. Que condições sociais os ativam? Se soubermos isso, podemos evitar situações que causam xenofobia ou guerra.


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