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Micro/Macro
Ciência e Hollywood
Marcelo Gleiser
especial para a Folha
Não existe dúvida de que a maior
parte do contato das pessoas com a
ciência é por meio do cinema. Não de livros, jornais, revistas ou cursos (infelizmente, já que eu dou aulas de ciência e
escrevo livros e artigos de divulgação
científica), ou de museus e palestras,
mas, principalmente, de Hollywood. Falo de centenas de milhões de pessoas, talvez bilhões.
A TV, claro, também é importante.
Mas é possível argumentar que, em geral, uma série de ficção científica que faz
sucesso na TV acaba, mais cedo ou mais
tarde, virando filme. Veja os exemplos
das séries "Jornada nas Estrelas", "Arquivo X" e "Perdidos no Espaço", entre
muitos outros. Mais ainda, filmes já faziam "divulgação científica" muito antes
de a TV existir.
Oitenta anos de ciência em Hollywood
contribuíram para a criação de uma percepção pública que oscila entre o venerável e o assustador. A ciência cria e destrói. Novas tecnologias trazem sempre a
dupla promessa do bem e do mal. Os filmes, em sua grande maioria, são representações dessa dualidade.
As imagens e idéias vistas nas telas vêm
carregadas de significados morais, relacionados, em sua maior parte, a um punhado de mitos clássicos. O mais popular é o mito de Prometeu, o titã que, por
ter roubado o fogo dos céus para o benefício da humanidade, foi condenado por
Zeus a ter o seu fígado devorado durante
o dia por uma águia, só para tê-lo regenerado à noite, em um ciclo que se repete
por toda a eternidade.
Uma encarnação recente desse mito
nas telas é o filme "Inteligência Artificial", de Steven Spielberg, no qual a humanidade se torna obsoleta graças à sua
própria criação, robôs inteligentes e
emotivos. Outra é a série "O Exterminador do Futuro", em que máquinas cada
vez mais poderosas têm como missão o
extermínio dos humanos (ainda bem
que temos Arnold Schwarzenegger para
nos salvar). Inúmeros filmes sobre apocalipses nucleares exploram o mesmo
mito: se nós ousarmos muito com nossas
invenções, se roubarmos o segredo dos
deuses, seremos punidos, tornando-nos
vítimas de nossa própria criação. A criatura destrói o criador.
No entanto, acusar Hollywood de deturpar a ciência apenas para fins lucrativos, usando a mistura de medo e fascínio
que as pessoas têm do novo para induzi-las a ir ao cinema, é apenas parte da história, a mais óbvia. Existe também uma
relação dual entre o imaginário e o real,
que é inspiradora não só para os que vão
ao cinema, mas para os que fazem ciência e vão ao cinema. Afinal, se a realidade
muitas vezes é mais estranha do que a
ficção, a ficção também pode motivar a
nossa compreensão do real: o impulso
criativo também se alimenta de sonhos.
Se tudo que existisse fosse apenas dentro
do plausível, a vida seria insuportavelmente chata e monótona. O desconhecido é tão necessário quanto o conhecido.
E o que antes era apenas visão pode, um
dia, se tornar realidade.
Essa relação simbiótica entre arte e
ciência é extremamente frutífera. Um
dos meus exemplos favoritos é o romance gótico "Frankenstein". Escrito em
1818 pela inglesa Mary Shelley, o livro
inspirou-se na ciência de ponta da época,
a descoberta (feita por Luigi Galvani e
explorada por Alessandro Volta, o inventor da pilha) da "eletricidade animal"
e de sua relação com o movimento muscular e com a vida. O clássico filme homônimo de James Whale, feito em 1931,
não só usou toda a maquinaria eletromagnética que existia na época da filmagem como também a ciência que Mary
Shelley jamais imaginaria possível:
Henry Frankenstein (o nome do inventor louco na peça de Peggy Webling que
serviu de base para o roteiro) foi "além
do ultravioleta para descobrir o grande
raio que trouxe a vida ao mundo".
E eis que, em 1953, o bioquímico Harold Urey e seu orientador, o vencedor
do Prêmio Nobel de Química Stanley
Miller, usaram descargas elétricas para
sintetizar aminoácidos -componentes
fundamentais de toda a matéria viva- a
partir de compostos químicos simples
como metano e amônia, que eles acreditavam estar presentes na atmosfera da
Terra primitiva. Descargas elétricas novamente aparecem como o "raio que
trouxe a vida ao mundo", dessa vez em
um laboratório real. Pergunto-me se eles
viram o filme de Whale e resolveram,
mesmo que inconscientemente, pôr à
prova a sua hipótese.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do
Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do
livro "O Fim da Terra e do Céu"
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