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São Paulo, domingo, 10 de agosto de 2003

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Ciência em Dia

O Caminho da Anta

Marcelo Leite
editor de Ciência

Uma das reportagens sobre ciência mais interessantes dos últimos tempos saiu em 16 de julho na Folha, um texto sobre etnoastronomia de Rafael Cariello e Antônio Gois. Nele se aprendia, por exemplo, que índios brasileiros vêem a Via Láctea como o Caminho da Anta.
Outra revelação dos estudos do físico Germano Bruno Affonso, da UFPR (Universidade Federal do Paraná), era que as constelações indígenas -Ema, Anta, Homem Velho, Veado- costumam reunir muito mais astros do que as consagradas pela astronomia tradicional, como Escorpião. E que é comum estrelas avermelhadas marcarem a posição do ânus dos animais celestes, nesse conhecimento projetado contra o mesmo firmamento sobre nossas cabeças.
Parece pouca coisa, ema em céu de escorpião e anta no caminho do leite, mas é toda uma outra perspectiva que se abre. Por coincidência, ela se revelou na véspera de uma viagem à Amazônia -para os céus de verdade que encimam as águas do Negro e do Tapajós- e logo após a leitura de um livro também iluminado: "A Inconstância da Alma Selvagem", do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, pela editora Cosac & Naify.
Assim como "Jamais Fomos Modernos", de Bruno Latour (Editora 34), é uma obra que abala as noções convencionais de objetividade que a pesquisa tecnocientífica alimenta sobre si mesma. No caso de Viveiros de Castro, a chave se encontra nas noções de "perspectivismo" e de "multinaturalismo", que dão nome ao capítulo-ensaio central, de número 8.
Simplificando talvez além da conta um pensamento elaborado, Viveiros de Castro encontra nas cosmologias ameríndias uma alternativa à oposição problemática entre Natureza e Cultura que subjaz à ciência ocidental, cuja matriz se encontra no Iluminismo do século 18.
Para a pesquisa de extração iluminista, existe uma única natureza, garantia última do conhecimento objetivo, e várias culturas -as moradas da particularidade e do subjetivismo. Entre ameríndios, valeria algo inverso: a cultura é universal, e particulares são as naturezas. Não é o homem que se aliena da animalidade com o advento da cultura, mas os animais que se afastam de uma humanidade universal, ora perdida. Os mitos indígenas, por sua vez, contariam como foi que esses animais perderam os atributos herdados ou mantidos pelos humanos.
O resultado dessa concepção peculiar é que os animais continuam a partilhar do mesmo universo cultural. Suas diferenças com os homens são apenas os corpos, sua natureza, e a perspectiva que lhes é inerente. O que um humano vê como lamaçal é a casa cerimonial da anta. Tudo depende do ponto de vista e da relação entre sujeitos culturais vestidos por corpos particulares. Uma das coisas que esse modo de ver-viver o mundo põe por terra é a noção de objeto, pois tudo é sujeito. A diferença, com isso, passa a ser algo que demanda negociação, diplomacia. É a atividade dos xamãs, que têm o poder de viajar entre as muitas naturezas e envergar outros corpos.
Como diz Viveiros de Castro, não se trata de adotar essa visão estranha (muito menos, de desqualificá-la por falta de "objetividade"), mas de reconhecê-la como uma forma de pensamento em seu pleno direito. Mais que tentar explicá-la, pode-se aprender com ela. Afinal, o que é a diferença senão um convite -um imperativo- a refletir sobre os próprios pontos de vista e valores?

E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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