São Paulo, domingo, 11 de janeiro de 2009

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Jogo de espera



A primeira coisa a pôr na bagagem, quando se pretende viajar para a Antártida, é paciência


Já perdi a conta de quantas vezes ouvimos dos funcionários da empresa Logística e Expedições Antárticas (ALE) a expressão "waiting game" (jogo de espera). A primeira coisa a pôr na bagagem, quando se pretende viajar para a Antártida, é paciência. Várias mudas de paciência. Primeiro foi a espera em Punta Arenas, Chile. O voo do jato cargueiro Ilyushin-76TD para os montes Patriot estava programado para 16 de dezembro. Partiu dez dias depois.
A cada dia de estadia chilena eram duas ou três ligações de Mark ou Felicia, funcionários da ALE, com as últimas informações meteorológicas. Uma hora era falta de horizonte. Outra, ventos fortes demais. Outra ainda, excesso de neve. Agora o exercício de paciência ocorre em condições menos favoráveis. O clima até que está bom em Patriot. Há quatro dias faz sol, e a temperatura, apesar de negativa, não tem descido muito abaixo de -10C. Ninguém entende por que o jato não pousa.
Com o vento a 40 km/h, são outros 500. Ninguém fica muito tempo fora da barraca, agora que os trabalhos da Expedição Deserto de Cristal estão encerrados. Rochas e testemunhos de gelo coletados ao longo de um mês pela primeira expedição científica brasileira ao interior da Antártida estão todos encaixotados. No confinamento das barracas, as opções não são muitas. Comer, beber, conversar -na barraca Weather Heaven da cozinha, apelidada pelos brasileiros de "jabuti", por seu formato.
Ler, com algum esforço, em meio às pilhérias (que vêm diminuindo, quanto mais se alonga a espera). No módulo azul de fibra de vidro cedido pelo Instituto Antártico Chileno, dá para trabalhar no computador (nele está sendo escrita esta coluna). Com alguma prática, é possível digitar usando luvas. Para mover o cursor no "touchpad", é preciso retirá-la. Até alguns dias atrás, era comum encontrar seis ou sete pessoas no módulo azul, trabalhando, ouvindo música ou assistindo a filmes nos computadores portáteis. Após quatro dias de espera -o voo de retorno estava previsto para o último domingo, dia 4-, ninguém mais se anima.
Todos se esforçam por dormir o máximo, e alguns conseguem fazê-lo por mais de 12 horas. Sonham com camas e colchões. Banhos e pães quentes. Vinhos chilenos. Cerveja gelada. Quando este texto for publicado, pelo menos os enviados especiais da Folha (o repórter fotográfico Toni Pires e este colunista) já deverão estar em Punta Arenas. Quem sabe até no Brasil. Mas nada disso estava garantido, na tarde de quinta-feira, durante sua redação. A última notícia da ALE havia sido dada na tarde do dia anterior. O gerente de operações em Patriot, Steve, viera ao módulo azul falar com Jefferson Cardia Simões, glaciologista gaúcho que chefia a expedição. Pela demora da conversação, já se sabia que seriam más novas.
Em resumo: a empresa está com vários atrasos acumulados e 97 passageiros retidos em Patriot. No Ilyushin cabem 60. A ALE só poderia dispor de dois lugares -para os jornalistas- no primeiro voo, previsto para a tarde de quinta-feira (o que não se verificou). O restante da expedição teria de esperar o voo seguinte, que seria realizado 24 horas depois. Antes embarcariam passageiros mais atrasados que eles, como os repórteres, cujo retorno estava marcado para 29 de dezembro. Steve pediu paciência ao grupo. Não faltou nele quem achasse que o gerente estava pedindo demais.

MARCELO LEITE é autor de "Ciência - Use com Cuidado" (Editora da Unicamp, 2008) e de "Brasil, Paisagens Naturais - Espaço, Sociedade e Biodiversidade nos Grandes Biomas Brasileiros" (Editora Ática, 2007).
Blog: Ciência em Dia ( cienciaemdia.folha.blog.uol.com.br ).
E-mail: cienciaemdia.folha@uol.com.br



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