|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Estatize já
Relatório a ser apresentado à ONU sugere que governos distribuam maconha a fim de reduzir danos causados pela droga
ANDY COGHLAN
DA "NEW SCIENTIST"
O que devemos fazer
para minimizar o
mal que a maconha pode causar à
saúde e ao bem-estar de seus consumidores e da
sociedade como um todo? A
resposta, segundo um relatório
de destacados acadêmicos e assessores governamentais, é
mudar a lei para permitir que o
Estado prepare e distribua a
droga para uso recreativo.
Essa proposta polêmica foi
feita por uma comissão reunida pela Fundação Beckley, organização beneficente britânica dedicada ao estudo científico das substâncias psicoativas.
"Os danos causados pela proibição são piores do que os decorrentes da própria substância", diz Amanda Feilding, fundadora da Fundação Beckley.
As ideias serão expostas em
março numa reunião da Comissão das Nações Unidas sobre Narcóticos (UNCND), em
Viena. Depois, um relatório segue para uma reunião da Assembleia Geral da ONU que vai
determinar a política sobre
drogas para a próxima década.
A maconha é hoje a droga ilícita mais consumida no mundo. As cifras mais recentes indicam que em 2006/07 cerca
de 166 milhões de pessoas de 15
anos ou mais -ou seja, 3,9% da
população dessa faixa etária-
usaram-na regularmente. Apenas 1% da população mundial
consome outras drogas ilegais.
"Porta de entrada"
As evidências reunidas pela
comissão Beckley indicaram
que a maconha prejudica a saúde dos que a consomem em
grande quantidade, especialmente dos que começam a fazer uso dela na adolescência.
Esses usuários correm risco aumentado de doenças mentais,
pulmonares e cardíacas. Eles
também têm mais chance de
abandonar a escola cedo, de se
envolverem em acidentes de
trânsito e de serem maus pais.
O relatório também encontrou
evidências de que a maconha
pode atuar como "porta de entrada", elevando a probabilidade de que seus usuários experimentem drogas mais prejudiciais, como a cocaína.
O relatório detalha um aumento acentuado na potência
da maconha, com o nível de
THC -a substância química
que provoca o "barato"- geralmente sendo o dobro ou o triplo do que era dez anos atrás.
Isso, segundo o relatório, é em
parte fruto da tendência ao cultivo da planta em estufas.
Apesar dos perigos, o relatório conclui que ela é muito menos prejudicial do que outras
drogas. O relatório observa que
até hoje só foram documentadas duas mortes por overdose
de maconha. Esse número contrasta com as 200 mil mortes
anuais de todas as causas atribuídas a outras drogas ilegais,
as 2,5 milhões de mortes anuais
relacionados ao álcool e as 5
milhões ligadas ao tabaco.
Venda regulamentada
Como a posse de cânabis é
ilegal em boa parte do mundo,
suas consequências prejudiciais se estendem para além dos
danos possíveis à saúde imediata. Em especial, seus consumidores correm o risco de sofrer
punições e ganhar ficha criminal. "Se você não acha que ser
preso é um mal, você é impossível de convencer", diz o criminologista Peter Reuter, da Universidade de Maryland, coautor do relatório. "Nos EUA, 750
mil pessoas foram presas em
2006, e eu vejo isso como um
dano substancial."
O relatório recomenda que a
maconha seja vendida legalmente, sujeita a critérios rígidos que garantam que não seja
suficientemente potente para
causar problemas psicológicos.
Isso, diz o documento, permitiria a imposição de uma restrição rígida de idade, impedindo
crianças de adquiri-la, e impediria a ação das quadrilhas criminosas que a traficam. Os revendedores licenciados não poderiam oferecer outras drogas
aos compradores de cânabis.
O quadro de referência das
leis antidrogas em todo o mundo hoje é fixado pela Convenção Única de 1961 sobre Drogas
Narcóticas. Embora a convenção preveja que todos seus signatários tornem ilegal a posse
de cânabis, alguns deles vêm fazendo experimentos com descriminalização. A Holanda, por
exemplo, não prende pessoas
que estejam de posse de pequenas quantidades.
Crime x infração
A legalização proposta pelo
grupo Beckley provavelmente
enfrentará oposição em Viena.
O receio é que afrouxar as leis
em relação à maconha enfraqueça todo o esforço internacional para combater o uso de
drogas recreativas. "A cânabis é
o ponto mais vulnerável de todo o edifício multilateral", diz
Antonio Maria Costa, diretor
executivo do UNODC.
Os EUA se opõem a qualquer
medida de legalização, temendo que ela resulte numa nação
de drogados. Já os autores do
estudo Beckley, entre outros,
argumentam que a punição não
reduz o consumo de cânabis e
causa danos ela própria.
Um estudo feito em 2000 por
Simon Lenton, do Instituto Nacional de Pesquisas com Drogas da Austrália, comparou o
que acontece com pessoas no
leste do país, onde a posse de
maconha incorre em castigo
criminal, com as do sul, onde os
consumidores recebem apenas
avisos de infração. Cerca de
32% dos "criminalizados" relataram consequências adversas
em seus empregos, contra apenas 2% dos "infratores".
Feilding admite que as propostas de seu grupo podem não
encontrar eco entre muitos dos
presentes na reunião em Viena.
Mas o simples fato de uma alternativa à proibição total da
cânabis ser discutida já constitui um avanço, afirma.
Tradução de CLARA ALLAIN
Texto Anterior: +Marcelo Gleiser: Cosmologia de alta precisão Próximo Texto: +Marcelo Leite: Jogo de espera Índice
|