São Paulo, domingo, 11 de março de 2007

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Questão de densidade

Estudo brasileiro sugere que cognição elevada dos humanos resulta da capacidade dos primatas de empacotar mais neurônios num mesmo volume de cérebro

SUZANA HERCULANO-HOUZEL
COLUNISTA DA FOLHA

A biologia insiste que somos animais como os outros, mas teimamos em querer ser diferentes em alguma coisa. Temos um cérebro enorme, capaz de autoconsciência e empatia; raciocinamos dez lances de xadrez à frente, sofremos de ansiedade, falamos várias línguas e gostamos de pensar que somos os únicos animais a fazer isso. Como tais declarações de superioridade do ser humano nunca foram contestadas por outra espécie animal, continuamos ocupando o cargo auto-designado de Seres Mais Inteligentes da Terra. Já tentamos de tudo para justificar nosso destaque. Apelamos para o tamanho absoluto do cérebro, o tamanho relativo do córtex pré-frontal (responsável pelo raciocínio abstrato e outras habilidades), um cérebro desproporcionalmente grande para o corpo que temos.
Até neurônios especiais já descobrimos em nosso cérebro. A neurociência hoje, no entanto, pede uma consideração mais humilde. Agora que sabemos determinar com quantos neurônios é feito o cérebro de qualquer animal, surge uma possibilidade historicamente inusitada: e se formos apenas grandes primatas, donos de cérebros somente tão grandes quanto deveriam ser em um animal do nosso tamanho?
Cérebros de mamíferos pesam entre 0.1 grama e quase 10 quilos. Quanto maior a massa corporal de uma espécie, maior será o seu cérebro. Essa regra já era clara no século 19. Se nosso corpo evidentemente não é o maior na natureza, nosso cérebro também não deve ser particularmente grande -e, de fato, não é. Com cerca de 1,4 quilo, o cérebro humano perde em tamanho absoluto para cérebros de golfinhos, elefantes e baleias, com cerca de 2, 4 e até 9 quilos, respectivamente.
Se apenas o tamanho do cérebro importasse, esses mamíferos gigantes deveriam estar nos estudando, e não nós a eles. Ainda assim, como o cérebro humano é de fato o maior dentre os dos primatas, seu tamanho sempre volta à baila, com cetáceos e elefantes convenientemente delegados à categoria de "seres inferiores".

Tudo é relativo
No século 20, a neurociência encontrou várias maneiras de explicar a vantagem cognitiva do ser humano. Uma das primeiras foi apontar para o tamanho relativo do cérebro. O cérebro humano é 20 vezes maior em termos relativos do que, por exemplo, o da baleia, pois responde por meros 2% do corpo. Contudo, tamanho relativo também não é documento, ou os humildes camundongos, com 10% do corpo no cérebro, dominariam a Terra.
Ao socorro do tamanho do cérebro humano veio o americano Harry Jerison, criador de uma medida chamada "índice de encefalização". Sua lógica era comparar o tamanho do cérebro com o que seria esperado para um animal daquele porte. Nós somos a espécie cujo cérebro mais se desvia do tamanho esperado: ele é cerca de sete vezes maior do que deveria ser. Deixamos os golfinhos para trás, com seu índice de encefalização 5, e colocamos no chinelo as baleias, com seus cérebros apenas duas vezes maiores do que o esperado. Somos, afinal, os melhores em alguma coisa: os seres mais encefalizados da face do planeta. Assunto encerrado. Ou não?

Inconsistências
A encefalização reinou absoluta por cerca de 50 anos, até que suas inconsistências começaram a ficar incômodas demais para serem ignoradas. Uma delas é que, de acordo com o índice de encefalização, pequenos macacos muito encefalizados deveriam ser mais inteligentes do que chimpanzés. Curiosamente, a neurociência nunca abandonou totalmente a comparação do tamanho do cérebro entres espécies como um índice de suas capacidades cognitivas -sempre ignorando os problemáticos e cabeçudos golfinhos e elefantes, animais convenientemente protegidos e difíceis de estudar.
A literatura especializada está cheia de considerações sobre a enorme superfície do córtex cerebral humano e comparações entre cérebros de roedores e primatas, como se esses animais fossem equivalentes e apenas seu tamanho importasse para determinar sua capacidade de processamento. A lógica por trás do argumento é que o número de neurônios no córtex seria proporcional a sua extensão e volume; se o número de neurônios determina a capacidade do cérebro, o tamanho do córtex seria uma aproximação boa dessa capacidade. Voltamos, assim, à era do "tamanho é documento".
A razão para a substituição indevida do número de neurônios pelo tamanho do cérebro como indicador de capacidade cognitiva era a dificuldade de estimar diretamente o número de neurônios no cérebro todo. Tais estimativas dependiam de se contar o número de neurônios em fatias de cérebro. Essa técnica, chamada de estereologia, é ótima para estimativas em regiões pequenas, homogêneas e bem definidas, mas um pesadelo para aplicar ao cérebro todo. O impasse só mudou recentemente, graças a uma invenção brasileira: o fracionador isotrópico.

Contando neurônios
Parece receita de cozinha. Pique um cérebro inteiro, amasse os pedaços em detergente até que todas as células se desfaçam e seus núcleos fiquem livres, em suspensão. Agite a suspensão até que ela fique homogênea, então colha uma amostra, conte ao microscópio o número de núcleos naquele volume, e extrapole para todo o volume da suspensão. Use um corante para identificar quantos núcleos são de neurônios, e "voilà": você saberá de quantos neurônios é feito o cérebro.
Este é o princípio do fracionador isotrópico, também conhecido em nosso laboratório, onde foi desenvolvido, como "sopa de cérebro". Em colaboração com o também neurocientista Roberto Lent e o físico Bruno Mota, aplicamos o método para determinar o número total de neurônios no cérebro de vários roedores, de camundongos a capivaras. Descobrimos, assim, várias regras empregadas pela natureza para construir cérebros de roedores. Por exemplo, ao se tornarem mais numerosos, os neurônios do cérebro dos roedores também crescem em tamanho, o que faz com que o órgão fique maior mais rápido do que ganha neurônios: um cérebro de roedor 40 vezes maior do que outro possui apenas dez vezes mais neurônios.
Se o número de neurônios de fato determinar as capacidades cognitivas de um animal, aumentar o cérebro de um roedor 40 vezes não o torna 40 vezes mais capaz, apenas umas dez. O cérebro ganha em tamanho, mas não tanto em conteúdo. Era de esperar que algumas regras de construção do cérebro fossem idênticas entre mamíferos. Mas algumas devem ser diferentes, ou não haveria razão para separar roedores e primatas em ordens distintas.
Como a relação entre número de neurônios e tamanho do cérebro e do corpo pode ser expressa com equações matemáticas, é fácil calcular o tamanho que teria o cérebro humano se fôssemos roedores: para abrigar cerca de 100 bilhões de neurônios, teríamos um cérebro de 45 quilos em um corpo de... 109 toneladas. Seríamos tão grandes quanto a baleia-azul, com um cérebro cinco vezes maior do que o dela. Obviamente, roedor algum jamais terá mais neurônios do que nós.

Cérebro de primata
Capivaras e macacos resos têm cérebros do mesmo tamanho, mas suas habilidades cognitivas são incomparáveis. Os resos jogam videogame, enquanto capivaras não vão muito além de chapinhar em lagoas. Isso indica que o cérebro de primatas deve ser construído segundo regras bem diferentes da dos roedores. Em colaboração com a equipe de Jon Kaas, da Universidade Vanderbilt, nos EUA, mostramos em um trabalho publicado no mês passado na revista científica "PNAS" que o cérebro dos primatas, ao contrário dos roedores, cresce linearmente conforme ganha neurônios. É uma estratégia da natureza para encaixar mais neurônios em cérebros grandes.
Desse modo, um cérebro dez vezes maior de primata possui também dez vezes mais neurônios: ele é muito mais denso que um cérebro de roedor do mesmo tamanho. O do macaco reso, por exemplo, possui três vezes mais neurônios na mesma massa que o cérebro da capivara, e isso deve explicar suas habilidades diferentes. O crescimento linear do cérebro dos primatas lhes possibilita acumular grandes números de neurônios sem que o cérebro fique grande demais. De posse dessas regras, podemos calcular o tamanho de um cérebro que possuísse cerca de 100 bilhões de neurônios, como o nosso. O resultado deve soar familiar: um primata com 100 bilhões de neurônios teria um cérebro de 1,450 quilo e um corpo de 73 quilos. Esse primata somos nós.

Fora do pedestal
Não somos os maiores mamíferos, não temos o maior cérebro. Não somos especialmente encefalizados: temos um cérebro apenas do tamanho esperado para um primata do nosso tamanho. Talvez tenhamos mais neurônios que os golfinhos, mas provavelmente menos que a baleia azul. Os tais neurônios especiais que só os grandes primatas possuiriam acabam de ser encontrados em baleias. Nosso córtex pré-frontal não é tão maior do que o dos outros grandes primatas.
Nossa maior distinção talvez esteja simplesmente em sermos primatas, e dos grandes, com um número gigantesco de neurônios concentrados em pouco espaço. Um primata de cérebro maior do que o nosso provavelmente seria ainda mais capaz do que somos. Isso, no entanto, não nos diminui. Não temos o maior número de neurônios do planeta, mas talvez eles sejam suficientemente numerosos para dar conta de nosso corpo e ainda sobrar para as funções executivas e sociais do córtex.
Talvez as maiores baleias até possuam mais neurônios do que nós mas não sobrem tantos para se ocupar de funções cognitivas mais complexas como programar datas de pagamento, escolher a cor do sofá da sala -e se autoproclamar Ser Mais Inteligente da Terra.


SUZANA HERCULANO-HOUZEL é neurocientista, professora da UFRJ, autora do livro "O Cérebro Nosso de Cada Dia" (ed. Vieira & Lent)


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