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Questão de densidade
Estudo brasileiro sugere que cognição elevada dos humanos resulta da capacidade dos primatas de empacotar
mais neurônios num mesmo volume de cérebro
SUZANA HERCULANO-HOUZEL
COLUNISTA DA FOLHA
A
biologia insiste que
somos animais como os outros, mas
teimamos em querer ser diferentes
em alguma coisa. Temos um
cérebro enorme, capaz de autoconsciência e empatia; raciocinamos dez lances de xadrez à
frente, sofremos de ansiedade,
falamos várias línguas e gostamos de pensar que somos os
únicos animais a fazer isso.
Como tais declarações de superioridade do ser humano
nunca foram contestadas por
outra espécie animal, continuamos ocupando o cargo auto-designado de Seres Mais Inteligentes da Terra.
Já tentamos de tudo para
justificar nosso destaque. Apelamos para o tamanho absoluto
do cérebro, o tamanho relativo
do córtex pré-frontal (responsável pelo raciocínio abstrato e
outras habilidades), um cérebro desproporcionalmente
grande para o corpo que temos.
Até neurônios especiais já descobrimos em nosso cérebro.
A neurociência hoje, no entanto, pede uma consideração
mais humilde. Agora que sabemos determinar com quantos
neurônios é feito o cérebro de
qualquer animal, surge uma
possibilidade historicamente
inusitada: e se formos apenas
grandes primatas, donos de cérebros somente tão grandes
quanto deveriam ser em um
animal do nosso tamanho?
Cérebros de mamíferos pesam entre 0.1 grama e quase 10
quilos. Quanto maior a massa
corporal de uma espécie, maior
será o seu cérebro. Essa regra já
era clara no século 19. Se nosso
corpo evidentemente não é o
maior na natureza, nosso cérebro também não deve ser particularmente grande -e, de fato,
não é. Com cerca de 1,4 quilo, o
cérebro humano perde em tamanho absoluto para cérebros
de golfinhos, elefantes e baleias, com cerca de 2, 4 e até 9
quilos, respectivamente.
Se apenas o tamanho do cérebro importasse, esses mamíferos gigantes deveriam estar
nos estudando, e não nós a eles.
Ainda assim, como o cérebro
humano é de fato o maior dentre os dos primatas, seu tamanho sempre volta à baila, com
cetáceos e elefantes convenientemente delegados à categoria de "seres inferiores".
Tudo é relativo
No século 20, a neurociência
encontrou várias maneiras de
explicar a vantagem cognitiva
do ser humano. Uma das primeiras foi apontar para o tamanho relativo do cérebro. O cérebro humano é 20 vezes maior
em termos relativos do que, por
exemplo, o da baleia, pois responde por meros 2% do corpo.
Contudo, tamanho relativo
também não é documento, ou
os humildes camundongos,
com 10% do corpo no cérebro,
dominariam a Terra.
Ao socorro do tamanho do
cérebro humano veio o americano Harry Jerison, criador de
uma medida chamada "índice
de encefalização". Sua lógica
era comparar o tamanho do cérebro com o que seria esperado
para um animal daquele porte.
Nós somos a espécie cujo cérebro mais se desvia do tamanho esperado: ele é cerca de sete vezes maior do que deveria
ser. Deixamos os golfinhos para
trás, com seu índice de encefalização 5, e colocamos no chinelo as baleias, com seus cérebros apenas duas vezes maiores
do que o esperado. Somos, afinal, os melhores em alguma
coisa: os seres mais encefalizados da face do planeta. Assunto
encerrado. Ou não?
Inconsistências
A encefalização reinou absoluta por cerca de 50 anos, até
que suas inconsistências começaram a ficar incômodas demais para serem ignoradas.
Uma delas é que, de acordo com
o índice de encefalização, pequenos macacos muito encefalizados deveriam ser mais inteligentes do que chimpanzés.
Curiosamente, a neurociência nunca abandonou totalmente a comparação do tamanho do cérebro entres espécies
como um índice de suas capacidades cognitivas -sempre ignorando os problemáticos e cabeçudos golfinhos e elefantes,
animais convenientemente
protegidos e difíceis de estudar.
A literatura especializada está cheia de considerações sobre
a enorme superfície do córtex
cerebral humano e comparações entre cérebros de roedores e primatas, como se esses
animais fossem equivalentes e
apenas seu tamanho importasse para determinar sua capacidade de processamento.
A lógica por trás do argumento é que o número de neurônios
no córtex seria proporcional a
sua extensão e volume; se o número de neurônios determina a
capacidade do cérebro, o tamanho do córtex seria uma aproximação boa dessa capacidade.
Voltamos, assim, à era do "tamanho é documento".
A razão para a substituição
indevida do número de neurônios pelo tamanho do cérebro
como indicador de capacidade
cognitiva era a dificuldade de
estimar diretamente o número
de neurônios no cérebro todo.
Tais estimativas dependiam de
se contar o número de neurônios em fatias de cérebro.
Essa técnica, chamada de estereologia, é ótima para estimativas em regiões pequenas, homogêneas e bem definidas, mas
um pesadelo para aplicar ao cérebro todo. O impasse só mudou recentemente, graças a
uma invenção brasileira: o fracionador isotrópico.
Contando neurônios
Parece receita de cozinha. Pique um cérebro inteiro, amasse
os pedaços em detergente até
que todas as células se desfaçam e seus núcleos fiquem livres, em suspensão. Agite a suspensão até que ela fique homogênea, então colha uma amostra, conte ao microscópio o número de núcleos naquele volume, e extrapole para todo o volume da suspensão. Use um corante para identificar quantos
núcleos são de neurônios, e
"voilà": você saberá de quantos
neurônios é feito o cérebro.
Este é o princípio do fracionador isotrópico, também conhecido em nosso laboratório,
onde foi desenvolvido, como
"sopa de cérebro". Em colaboração com o também neurocientista Roberto Lent e o físico
Bruno Mota, aplicamos o método para determinar o número total de neurônios no cérebro de vários roedores, de camundongos a capivaras.
Descobrimos, assim, várias
regras empregadas pela natureza para construir cérebros de
roedores. Por exemplo, ao se
tornarem mais numerosos, os
neurônios do cérebro dos roedores também crescem em tamanho, o que faz com que o órgão fique maior mais rápido do
que ganha neurônios: um cérebro de roedor 40 vezes maior
do que outro possui apenas dez
vezes mais neurônios.
Se o número de neurônios de
fato determinar as capacidades
cognitivas de um animal, aumentar o cérebro de um roedor
40 vezes não o torna 40 vezes
mais capaz, apenas umas dez. O
cérebro ganha em tamanho,
mas não tanto em conteúdo.
Era de esperar que algumas
regras de construção do cérebro fossem idênticas entre mamíferos. Mas algumas devem
ser diferentes, ou não haveria
razão para separar roedores e
primatas em ordens distintas.
Como a relação entre número de neurônios e tamanho do
cérebro e do corpo pode ser expressa com equações matemáticas, é fácil calcular o tamanho
que teria o cérebro humano se
fôssemos roedores: para abrigar cerca de 100 bilhões de neurônios, teríamos um cérebro de
45 quilos em um corpo de... 109
toneladas. Seríamos tão grandes quanto a baleia-azul, com
um cérebro cinco vezes maior
do que o dela. Obviamente, roedor algum jamais terá mais
neurônios do que nós.
Cérebro de primata
Capivaras e macacos resos
têm cérebros do mesmo tamanho, mas suas habilidades cognitivas são incomparáveis. Os
resos jogam videogame, enquanto capivaras não vão muito além de chapinhar em lagoas. Isso indica que o cérebro
de primatas deve ser construído segundo regras bem diferentes da dos roedores.
Em colaboração com a equipe de Jon Kaas, da Universidade Vanderbilt, nos EUA, mostramos em um trabalho publicado no mês passado na revista
científica "PNAS" que o cérebro dos primatas, ao contrário
dos roedores, cresce linearmente conforme ganha neurônios. É uma estratégia da natureza para encaixar mais neurônios em cérebros grandes.
Desse modo, um cérebro dez
vezes maior de primata possui
também dez vezes mais neurônios: ele é muito mais denso
que um cérebro de roedor do
mesmo tamanho. O do macaco
reso, por exemplo, possui três
vezes mais neurônios na mesma massa que o cérebro da capivara, e isso deve explicar suas
habilidades diferentes.
O crescimento linear do cérebro dos primatas lhes possibilita acumular grandes números de neurônios sem que o cérebro fique grande demais.
De posse dessas regras, podemos calcular o tamanho de um
cérebro que possuísse cerca de
100 bilhões de neurônios, como
o nosso. O resultado deve soar
familiar: um primata com 100
bilhões de neurônios teria um
cérebro de 1,450 quilo e um
corpo de 73 quilos. Esse primata somos nós.
Fora do pedestal
Não somos os maiores mamíferos, não temos o maior cérebro. Não somos especialmente encefalizados: temos
um cérebro apenas do tamanho esperado para um primata
do nosso tamanho.
Talvez tenhamos mais neurônios que os golfinhos, mas
provavelmente menos que a
baleia azul. Os tais neurônios
especiais que só os grandes primatas possuiriam acabam de
ser encontrados em baleias.
Nosso córtex pré-frontal não é
tão maior do que o dos outros
grandes primatas.
Nossa maior distinção talvez
esteja simplesmente em sermos primatas, e dos grandes,
com um número gigantesco de
neurônios concentrados em
pouco espaço. Um primata de
cérebro maior do que o nosso
provavelmente seria ainda
mais capaz do que somos.
Isso, no entanto, não nos diminui. Não temos o maior número de neurônios do planeta,
mas talvez eles sejam suficientemente numerosos para dar
conta de nosso corpo e ainda
sobrar para as funções executivas e sociais do córtex.
Talvez as maiores baleias até
possuam mais neurônios do
que nós mas não sobrem tantos
para se ocupar de funções cognitivas mais complexas como
programar datas de pagamento, escolher a cor do sofá da sala
-e se autoproclamar Ser Mais
Inteligente da Terra.
SUZANA HERCULANO-HOUZEL é neurocientista, professora da UFRJ, autora do livro "O Cérebro Nosso de Cada Dia" (ed. Vieira & Lent)
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