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Marcelo Leite
Poluição "do bem"
Tudo em matéria
de clima é mais complicado do que parece
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No Brasil, não falta quem defenda o direito de desmatar e expulsar índios de suas terras
em nome da soberania e do desenvolvimento. No governo federal, muitos
fazem coro envergonhado com essa
gente, dizendo não aceitar palpite de
quem já devastou as próprias florestas. Deveriam se juntar num movimento revanchista para exigir que europeus e americanos parem de combater a poluição, porque isso pode
destruir a "nossa" Amazônia.
Seria uma conclusão ética e ecologicamente débil (mais uma), mas não de
todo ilógica, de estudo publicado
quinta-feira no periódico "Nature".
Foi notícia por toda parte: a seca de
2005 na Amazônia ocidental teve como causa mais provável um aumento
da diferença de temperatura em setores do oceano Atlântico acima e abaixo da linha do Equador.
Esse padrão anormal teria desviado
chuvas da floresta, anomalia que pode
se tornar ainda mais freqüente ao longo deste século. É o que dizem simulações de computador do Centro Hadley de estudos meteorológicos. O artigo veio assinado por sete estudiosos
do Reino Unido e dois do Brasil (José
Marengo e Carlos Nobre).
O paradoxo do estudo está na origem do aquecimento anormal do
Atlântico do lado de lá do Equador: diminuição da poluição no hemisfério
Norte. Como assim? Todo mundo sabe que a poluição atmosférica -gases
emitidos na queima de combustíveis
fósseis como petróleo e carvão- causa aquecimento, não resfriamento, e
que ela está aumentando, não caindo.
Como tudo em matéria de mudanças climáticas, é sempre mais complicado do que parece. Para começo de
conversa, há poluição e poluição.
Queimar combustíveis fósseis produz,
entre várias coisas, partículas de enxofre que refletem luz solar. Chamadas de aerossóis, fazem "sombra" sobre a superfície do globo, diminuindo
a energia disponível para esquentá-la.
Em tempo de efeito estufa, essa poluição "do bem" representa um desconto de cerca de 30% no aquecimento global (em lugar de 2,3 watts por
metro quadrado, energia bastante para acender uma lanterna, sobra para
aquecer a atmosfera 1,6 watt por metro quadrado). É o que os especialistas
chamam de "feedback negativo", pois
contrabalança a tendência geral.
Ocorre que o enxofre é também um
poluente sério, fonte da chuva ácida.
Países industrializados lutam para diminuir sua emissão e com isso evitar a
destruição das poucas florestas remanescentes no hemisfério Norte. Só os
Estados Unidos, em duas décadas, reduziram em 40% o enxofre.
Com cada vez menos "sombra", o
Atlântico Norte fica mais exposto ao
aquecimento global. As águas esquentam e alteram os padrões de circulação na vizinhança do Equador. Chove menos na Amazônia, os rios secam. O
que era para ser uma poluição "do
bem" pode resultar numa catástrofe.
Esse estudo na "Nature" deve servir
de chamado à razão para quem defende megaprojetos de geoengenharia,
como lançar enormes quantidades de
enxofre na atmosfera para combater o
aquecimento global. Apesar de contar
com defensores respeitáveis, como o
Nobel Paul Crutzen, seria uma temeridade extrapolar em escala planetária a húbris tecnocientífica e sua obsessão com o controle da natureza.
A maior fonte mundial de gases do
efeito estufa e de aerossóis, hoje, é a
China, que inaugura a cada semana
uma termelétrica a carvão com altos
teores de enxofre. Se conseguir diminuir a emissão de aerossóis, contribuirá de modo ainda mais explosivo para o aquecimento global.
Se correr, o dragão pega...
MARCELO LEITE é autor de "Promessas do Genoma" (Editora da Unesp, 2007) e de "Brasil, Paisagens Naturais - Espaço, Sociedade e Biodiversidade nos Grandes Biomas
Brasileiros" (Editora Ática, 2007). Blog: Ciência em Dia (
cienciaemdia.folha.blog.uol.com.br). E-mail: cienciaemdia.folha@uol.com.br
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