São Paulo, domingo, 11 de maio de 2008

Texto Anterior | Índice

Marcelo Leite

Poluição "do bem"


Tudo em matéria de clima é mais complicado do que parece

No Brasil, não falta quem defenda o direito de desmatar e expulsar índios de suas terras em nome da soberania e do desenvolvimento. No governo federal, muitos fazem coro envergonhado com essa gente, dizendo não aceitar palpite de quem já devastou as próprias florestas. Deveriam se juntar num movimento revanchista para exigir que europeus e americanos parem de combater a poluição, porque isso pode destruir a "nossa" Amazônia.
Seria uma conclusão ética e ecologicamente débil (mais uma), mas não de todo ilógica, de estudo publicado quinta-feira no periódico "Nature".
Foi notícia por toda parte: a seca de 2005 na Amazônia ocidental teve como causa mais provável um aumento da diferença de temperatura em setores do oceano Atlântico acima e abaixo da linha do Equador. Esse padrão anormal teria desviado chuvas da floresta, anomalia que pode se tornar ainda mais freqüente ao longo deste século. É o que dizem simulações de computador do Centro Hadley de estudos meteorológicos. O artigo veio assinado por sete estudiosos do Reino Unido e dois do Brasil (José Marengo e Carlos Nobre).
O paradoxo do estudo está na origem do aquecimento anormal do Atlântico do lado de lá do Equador: diminuição da poluição no hemisfério Norte. Como assim? Todo mundo sabe que a poluição atmosférica -gases emitidos na queima de combustíveis fósseis como petróleo e carvão- causa aquecimento, não resfriamento, e que ela está aumentando, não caindo.
Como tudo em matéria de mudanças climáticas, é sempre mais complicado do que parece. Para começo de conversa, há poluição e poluição. Queimar combustíveis fósseis produz, entre várias coisas, partículas de enxofre que refletem luz solar. Chamadas de aerossóis, fazem "sombra" sobre a superfície do globo, diminuindo a energia disponível para esquentá-la.
Em tempo de efeito estufa, essa poluição "do bem" representa um desconto de cerca de 30% no aquecimento global (em lugar de 2,3 watts por metro quadrado, energia bastante para acender uma lanterna, sobra para aquecer a atmosfera 1,6 watt por metro quadrado). É o que os especialistas chamam de "feedback negativo", pois contrabalança a tendência geral. Ocorre que o enxofre é também um poluente sério, fonte da chuva ácida.
Países industrializados lutam para diminuir sua emissão e com isso evitar a destruição das poucas florestas remanescentes no hemisfério Norte. Só os Estados Unidos, em duas décadas, reduziram em 40% o enxofre. Com cada vez menos "sombra", o Atlântico Norte fica mais exposto ao aquecimento global. As águas esquentam e alteram os padrões de circulação na vizinhança do Equador. Chove menos na Amazônia, os rios secam. O que era para ser uma poluição "do bem" pode resultar numa catástrofe.
Esse estudo na "Nature" deve servir de chamado à razão para quem defende megaprojetos de geoengenharia, como lançar enormes quantidades de enxofre na atmosfera para combater o aquecimento global. Apesar de contar com defensores respeitáveis, como o Nobel Paul Crutzen, seria uma temeridade extrapolar em escala planetária a húbris tecnocientífica e sua obsessão com o controle da natureza.
A maior fonte mundial de gases do efeito estufa e de aerossóis, hoje, é a China, que inaugura a cada semana uma termelétrica a carvão com altos teores de enxofre. Se conseguir diminuir a emissão de aerossóis, contribuirá de modo ainda mais explosivo para o aquecimento global. Se correr, o dragão pega...


MARCELO LEITE é autor de "Promessas do Genoma" (Editora da Unesp, 2007) e de "Brasil, Paisagens Naturais - Espaço, Sociedade e Biodiversidade nos Grandes Biomas Brasileiros" (Editora Ática, 2007). Blog: Ciência em Dia ( cienciaemdia.folha.blog.uol.com.br). E-mail: cienciaemdia.folha@uol.com.br


Texto Anterior: Marcelo Gleiser: Inteligência seletiva
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.