São Paulo, domingo, 11 de setembro de 2005

Próximo Texto | Índice

+ ciência

Ação de ecoterroristas no Reino Unido põe debate sobre tratamento de animais de laboratório na ordem do dia, mas cientistas dizem que não é possível fazer pesquisa sem eles

O dia da cobaia

Adam Rountree - 02.jun.2003/Getty Images/AFP
Ativista da ONG Peta (Pessoas para o Tratamento Ético dos Animais) é imobilizado por policial durante protesto em Nova York


REINALDO JOSÉ LOPES
DA REPORTAGEM LOCAL

Era para ter sido um daqueles momentos de triunfo e de céu sem nuvens para a ciência: a publicação da seqüência completa do DNA do chimpanzé, o mais próximo parente vivo da humanidade. Uma dissonância significativa, no entanto, chamava a atenção em meio à coletânea de artigos celebrando o feito no periódico científico britânico "Nature" (www.nature.com): enquanto um classificava os chimpanzés como "recurso biomédico único", outro chegava perto de pedir uma moratória dos estudos invasivos com eles e os outros grandes macacos.
Seria um tanto exagerado dizer que a atitude em relação a chimpanzés, bonobos, gorilas e orangotangos reflete o que se vê em outras áreas da pesquisa com animais. Mas o fato é que a ética de minimizar a utilização e o sofrimento de outros seres vivos em experimentos parece estar sendo incorporada ao trabalho dos cientistas, embora a própria necessidade de usá-los divida os pesquisadores. Muitos admitem que é necessário e desejável encontrar alternativas ao uso de animais vivos, ressalvando que a ciência básica provavelmente nunca conseguirá eliminar sua presença nos laboratórios.
Em países como o Reino Unido, o momento não poderia ser mais polarizado. Ativistas radicais de organizações dos direitos dos animais conseguiram, no mês passado, o fechamento de uma fazenda de porquinhos-da-índia, a Darley Oaks, em Staffordshire, depois de anos de uma verdadeira guerra suja.
Um dos lances mais dramáticos envolveu o roubo dos restos mortais de Gladys Hammond, sogra de Chris Hall, um dos donos da fazenda. Antes disso, as táticas de intimidação dos ativistas já tinham conseguido fazer com que o jornaleiro desistisse de entregar jornais para a família; que o clube de golfe do qual Chris Hall era sócio pedisse sua saída; e que o pub que os Halls costumavam freqüentar tivesse seu contrato com uma cervejaria cancelado, de acordo com o jornal britânico "The Independent".

Contra a dor
Os cientistas brasileiros passam longe de ter de lidar com atos de ecoterrorismo como esse, mas fazem questão de afirmar que a imagem de crueldade atribuída a esse tipo de experimento passa longe da realidade. "O princípio básico é prover o bem-estar do animal", afirmou à Folha Dolores Rivero, bióloga do Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina da USP. Ela estuda, em ratos, os efeitos fisiológicos da poluição da Grande São Paulo.
"Toda publicação científica tem de conter informações sobre os procedimentos de anestesia e sobre a aprovação deles por um conselho de ética da instituição", diz Rivero. Segundo o veterinário Stelio Luna, da Unesp (Universidade Estadual Paulista) de Botucatu, a exigência é especialmente forte para quem deseja publicar seu trabalho em revistas científicas internacionais, de maior prestígio, e também é indispensável para doutorandos.
Para a bióloga da USP, não há como questionar a importância da experimentação com animais para o avanço dos estudos sobre a saúde humana. Ela destaca a contribuição para os transplantes e para o conhecimento básico dos fenômenos fisiológicos. Rivero diz estar consciente da necessidade de reduzir ao máximo o número de animais necessários para um experimento. Segundo ela, métodos alternativos, como estudos em culturas de células ou tecidos, são tão úteis quanto testes in vivo quando se deseja entender a ação de determinada substância em nível celular ou molecular.
"Uma coisa é quando você conhece o mecanismo fisiológico até chegar à célula. Se você não sabe como funciona esse mecanismo, o caminho que leva ao dano celular, não adianta fazer a cultura de células", diz Rivero. "Em suma, depende da pergunta que você faz e do que você quer estudar." Ela exemplifica com a própria pesquisa.
"Roedores são muito similares a humanos em vários aspectos. O epitélio pulmonar, por exemplo, é idêntico. Por outro lado, não adiantaria nada tentar estudar doenças cardíacas em répteis, porque o coração deles é diferente do nosso", compara a pesquisadora da USP.

Desperdício
Luna, da Unesp, que tomou contato direto com a truculência dos ativistas britânicos ("fiz meu doutorado na Inglaterra, e lá a gente era instruído a verificar o pneu do carro para ver se não tinha bomba", conta, bem-humorado), aponta outro ângulo importante. Segundo ele, a qualidade de muitos estudos com animais é questionável e precisa ser revista, de forma evitar o sacrifício desnecessário dos bichos.
"No Reino Unido, apenas 25% das pesquisas feitas com animais acabam sendo publicadas", afirma. Muitos dos testes mais triviais, como os de substâncias cancerígenas, cosméticos ou os sobre a presença do vírus da raiva, continuam sendo feitos in vivo mesmo com a presença de alternativas já estabelecidas, critica ele. "As pessoas têm uma certa relutância em mudar e mantêm o paradigma." Luna também relativiza a relação direta entre pesquisa médica em animais e a melhoria da saúde de seres humanos.
"Há estudos mostrando que a queda da mortalidade humana conseguida entre 1900 e 1984, por exemplo, se deveu principalmente ao saneamento básico e às normas de higiene. Só 3,5% dele é resultado de intervenções médicas", afirma, com a ressalva de que, em áreas como a cardiologia e os transplantes de órgãos, a contribuição direta dos estudos com animais foi fundamental.
O pesquisador da Unesp questiona a utilização, ainda comum nas escolas veterinárias do Brasil, de animais vivos para o treinamento de estudantes. "Já está provado que não há diferença significativa de desempenho entre quem aprende com o animal in vivo e quem usa recursos audiovisuais ou cadáveres", afirma.
Silvia Barreto Ortiz, pesquisadora da Faculdade de Medicina da USP e presidente do Cobea (Colégio Brasileiro de Experimentação Animal), discorda. "Como é que você vai aprender a fazer uma sutura num animal que não sangra?", diz, referindo-se ao treino com cadáveres.
Ortiz costuma cobrar "coerência" das pessoas -quem pede a proibição total de experimentos com animais não deveria nunca mais tomar uma aspirina ou se vacinar contra poliomielite, sustenta ela. "É muito difícil abolir completamente os experimentos. O que podemos fazer é zelar pela analgesia e pelo bem-estar do animal", continua.

Quase iguais?
Alternativas ou anestésicos à parte, no entanto, a questão mais espinhosa de todas permanece em aberto. Haverá ocasiões nas quais é eticamente injustificável usar animais em experimentos? Se sim, será que essa barreira deveria ser traçada com base na semelhança entre a possível cobaia e os seres humanos, como propõe um dos artigos da "Nature" ao tratar dos grandes macacos?
"Não sei se a semelhança entre os macacos e os seres humanos justificaria uma abstenção do uso para testar uma vacina por exemplo. Depende muito das características que as pessoas atribuem ao animal. Quem se afeiçoa ao seu cachorro e acredita que ele tem uma personalidade jamais aceitaria que ele fosse usado, mas talvez não tivesse problemas com um macaco", diz Rivero.
Categórico, Luna vai em outra direção: "Em poucas palavras, eu diria que é inquestionável o fato de que, no sofrimento, humanos e animais são iguais. Os animais sofrem física e emocionalmente, assim como nós. Eles foram extremamente úteis, mas talvez haja um momento no qual tenhamos de parar de usá-los."


Próximo Texto: "Não basta aumentar as gaiolas"
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.