São Paulo, domingo, 11 de setembro de 2005

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Ciência em Dia

Olho no olho da Amazônia

MARCELO LEITE
COLUNISTA DA FOLHA

Sempre que se fala na ainda subdesenvolvida diferença entre Estado e governo, no Brasil, o exemplo dado é o do Itamaraty, um corpo treinado para defender interesses de longo prazo do país. Pois talvez seja o caso de ampliar a lista com outras instituições, como o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais).


A divulgação das taxas de devastação da Amazônia obtidas pelo Inpe se tornou questão de segurança nacional


Não que os bunkers de São José dos Campos e de Cachoeira Paulista sejam imunes à infiltração de interesses políticos circunstanciais, longe disso. A sombra projetada pelo complexo militar-aerospacial erguido no Vale do Paraíba paulista é longa, afinal, e nela viceja cultura de segredo e autoritarismo. Nem sempre o Inpe conseguiu escapar dessa lógica contrária aos valores científicos.
Uma tarefa muito sensível em que o Inpe esteve envolvido desde 1977 é a de ficar de olho no desmatamento da Amazônia. Naquele ano foi realizado o primeiro levantamento com base em imagens de satélite. A partir de 1988, ele viraria programa anual, o Prodes (www.obt.inpe.br/prodes).
Com a escalada do desflorestamento nos anos 1980, a imagem internacional do país sofria abalos graves. A divulgação das taxas do Inpe se tornou questão de segurança nacional. Em 1989, por exemplo, a manipulação dos números foi objeto de reportagens reveladoras de Mauricio Tuffani.
De lá para cá, muita coisa mudou. A cifra oficial de desmatamento do Prodes deixou de ser calculada com base em "overlays" (transparências) sobre imagens de satélites, migrando para uma base de dados digital. Em 2003, o Inpe recebeu nova encomenda do Ministério do Meio Ambiente (MMA): desenvolver um sistema mais ágil de detecção de desmatamento, para apoiar a fiscalização. Nasceu o Deter (www.obt.inpe.br/deter), que usa imagens com menor resolução, porém mais freqüentes, de outro satélite, o Terra, e gera alertas para o Ibama de derrubadas recentes.
A novidade é que o Inpe publica todos os dados e alertas do Deter pela internet. Organizações não-governamentais com capacidade técnica para processar os dados estão deitando e rolando. Como o Imazon (www.imazon.org.br), que usa o Deter para estimar a evolução da área de desmatamento mês a mês.
O Inpe é contra. Argumenta que o sistema tem pouco mais de um ano e que a incidência de nuvens na Amazônia torna muito incerta a comparação entre as imagens colhidas no mês de um ano e no mesmo mês do ano seguinte. Preferem refinar a metodologia (sem definir prazos) e complementar a análise com imagens de outros satélites, como o indiano IRS-P6 e o sistema de microssatélites DMC. O Inpe recebeu R$ 1 milhão do MMA para isso.
Transparência é assim mesmo: dados abertos, debate público, aperfeiçoamento do serviço. Obviamente, numa função de Estado, o Inpe tem de caminhar com maior prudência, até conservadorismo. Como diz Dalton Valeriano, coordenador de Monitoramento Ambiental da Amazônia: "Saiu da gente [do Inpe], é oficial".
Assim na Terra como no Itamaraty.

Marcelo Leite é doutor em Ciências Sociais pela Unicamp, autor do livro "O DNA" (Publifolha) e responsável pelo blog Ciência em Dia (http://cienciaemdia.zip.net).
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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