São Paulo, domingo, 11 de outubro de 2009

Texto Anterior | Índice

+Marcelo Leite

Vai indo que eu não vou


Mesmo com apreço por Freud, Shawn não crê que haja cura para fobias


Anos atrás, um grande amigo falou da série de TV "Monk". Assisti a alguns episódios protagonizados pelo detetive fóbico que perde o cargo na polícia de San Francisco, não tinha muita graça. Semanas atrás comecei a vê-los em série, com DVD, e descobri que é sensacional.
Deve ser a idade. As manias vão se tornando mais sérias, o que aumenta o grau de identificação com o atormentado e minucioso Adrian Monk. Um pouco como aconteceu com a leitura da autobiografia de Allen Shawn, "Bem que Eu Queria Ir" (Cia. das Letras, 312 págs. R$ 48,00), que uma boa alma fez o favor de enviar.
O livro quase foi parar na base da pilha cuja leitura nunca se materializa, meio caminho andado para o esquecimento. Antes disso, foi salvo pela orelha. Nela estava a informação crucial: Allen, o fóbico autor, é filho de William Shawn, editor por 35 anos da revista "The New Yorker". Todo jornalista que se preze, quando jovem, sonha com uma assinatura da "New Yorker". Depois de velho, sonha com a sua assinatura na "New Yorker". Na impossibilidade de uma coisa ou outra, se for brasileiro, tem o consolo de sonhar acordado com a "Piauí", competente similar nacional.
Shawn, pai, era ele próprio um agorafóbico. Lidava mal com espaços abertos e lugares desconhecidos, para dizer o mínimo. Shawn, filho, foi pelo mesmo caminho -e muito mais fundo. Já morou em Paris, mas há quase duas décadas não viaja de avião. Quase não sai de Vermont, o idílico Estado americano em que se refugiou.
Apesar das limitações incapacitantes impostas por múltiplas fobias, tornou-se compositor e escritor. A julgar por "Bem que Eu Queria Ir", aprendeu alguma coisa com o pai. Consegue expor as entranhas da família problemática sem perder a dignidade nem, por assim dizer, o carinho. Leigo, Allen Shawn empreende uma corajosa travessia dos desertos da ciência. De Charles Darwin e Sigmund Freud a Oliver Sacks e António Damásio, vai em busca de razões para seu sofrimento. Sai-se bastante bem.
Conclui por uma origem verossímil e modesta das fobias: módulos "animais" da mente humana, tornados decisivos para a sobrevivência pela seleção darwiniana. Eles passam a disparar por motivos triviais e fora de hora, mais ou menos como um alarme de carro desregulado.
Freud está no epicentro dessa prosa que entrelaça tão bem uma biografia com as vicissitudes da espécie. Defende a tese -como faz o neurocientista brasileiro Sidarta Ribeiro- de que o médico vienense tem muito de compatível com o que se descobre contemporaneamente sobre o modo de interação mente-cérebro.
Shawn, filho, dedica várias páginas de franqueza quase rude à própria infância e à irmã gêmea autista, Mary. Bom escritor, mantém a classe: "Eventos ocorridos durante essa época deixam suas impressões digitais na argila úmida da mente que se organiza".
Com todo seu apreço pela psicanálise, Shawn admite com humildade que não há cura verdadeira para as fobias. Quando muito, algum controle e a perspectiva de uma vida minimamente funcional, criativa. Com espaço para conformar-se com a caixa de Pandora da família: "Para poder viver de forma razoavelmente plena, primeiro temos de ocupar nossa própria pele; lembrar e reconhecer, tanto quanto possível, o que realmente aconteceu, e nos enfurecer e gritar a respeito, se for o caso. Mas então encaramos uma cadeia infinita de causas, e o perdão se estabelece. Nossos pais foram filhos que cresceram e tiveram seus próprios filhos."

MARCELO LEITE é autor de "Darwin" (série Folha Explica, Publifolha, 2009) e "Ciência - Use com Cuidado" (Editora da Unicamp, 2008). Blog: Ciência em Dia ( cienciaemdia.folha.blog.uol.com.br ) E-mail: cienciaemdia.folha@uol.com.br



Texto Anterior: +Marcelo Gleiser: Einstein e o Antropólogo
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.