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GENOMA HUMANO
Complexidade do DNA leva cientistas a duvidar que trecho isolado tenha poder de ditar característica
Sequenciamento abala a noção de gene
MARCELO LEITE
EDITOR DE CIÊNCIA
Apenas uma leitura superficial
dos dois artigos com a sequência
do genoma humano na "Nature"
e na "Science", além das dezenas
de comentários, revela uma tendência paradoxal: o genoma vai
bem e os genes vão mal. Mais precisamente: quanto mais se conhece a sequência do código genético
humano, menos parece sustentável, ou útil, a noção de gene.
Quem diz é o próprio Craig
Venter, que acelerou todo o processo de sequenciamento: "A noção de que um gene é igual a uma
doença, ou de que um gene produz uma proteína-chave, está
saindo pela janela".
A idéia de gene surgiu há cerca
de um século, antes mesmo de se
saber que a substância portadora
da hereditariedade era o ácido desoxirribonucléico (DNA) ou que
ele tinha a estrutura de escada torcida que se tornaria um ícone, a
hélice dupla. Gene seria o suporte
físico-químico de cada traço hereditário, a unidade discreta transmitida de geração para geração.
Mais tarde, o gene seria definido
como o trecho de DNA contendo
o código para uma determinada
proteína. Ocorre que essas sequências nunca existiram como
entidades físicas, sempre foram
uma construção teórica.
Já se sabia, antes de completado
o genoma, que seus elementos
significativos (éxons) vinham interrompidos na longa cadeia do
DNA por sequências aparentemente inúteis (íntrons). O código
para a fabricação da proteína só
era montado na hora, num processo conhecido como "splicing"
(que descartava os íntrons).
Agora, com uma visão mais panorâmica do genoma, vai ficando
claro que aquilo que deveria ser
único e unívoco -o gene- pode
dar origem a inúmeras proteínas,
ou seja, há muitas formas alternativas de editar a informação.
Paradoxalmente, a decifração
do genoma tem como efeito deixar mais evidente que se sabe
muito pouco sobre os processos
que regulam essas "escolhas"
dentro da célula. Ou seja, o que
determina que tais e tais pedaços
de DNA sejam transcritos, na hora de produzir uma proteína.
Fim do determinismo
Eis aqui um novo paradoxo: o
processo de regulação é realizado
por proteínas da célula, que por
sua vez reagem aos estímulos do
ambiente interno (o organismo) e
externo. As proteínas, portanto,
determinam aquilo que deveria
determiná-las (os genes).
"A pesquisa de ora em diante
deve ir mais além na investigação
da função do DNA repetitivo, da
regulação da expressão (leitura)
gênica, das interações entre proteínas, da sinalização, dos efeitos
do ambiente e de outros mecanismos que possam contribuir para a
complexidade de um organismo", escreveu na "Science" a editora Barbara Jasny, que cuidou da
publicação do artigo de Venter.
Se os fatores externos ao genoma são tão importantes para especificar o que dele será lido e utilizado, na vida concreta das células, a sequência em si perde um
pouco de importância. Um abalo
evidente para um campo de pesquisa que punha todas as suas fichas em identificar uma ou poucas unidades discretas responsáveis por características ou doenças -"o" gene do câncer de próstata, ou do mal de Alzheimer.
Começa assim a ruir o arranha-céu de determinismo e reducionismo que tão bem serviu aos
projetos genoma na hora de angariar os bilhões que os transformariam no substituto "Big Science"
dos projetos espaciais.
Mais uma vez, as palavras são
do próprio Venter: "Há duas falácias a serem evitadas: determinismo, a idéia de que todas as características de uma pessoa estão
"impressas" no genoma; e o reducionismo, (a idéia) de que, agora
que a sequência humana é conhecida por completo, será apenas
uma questão de tempo até que
nossa compreensão das funções e
das interações dos genes forneça
uma descrição causal completa da
variabilidade humana".
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