São Paulo, domingo, 12 de março de 2000


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+ ciência
Pesquisadores norte-americanos lançam livro em que defendem que o estupro evoluiu como parte do comportamento reprodutivo dos seres vivos
A violência nos genes

Reprodução
"La Ola", 1988, fotomontagem de Jacqueline Feldine


David Thornhill
da "New Scientist"

Quer ver uma tese provocativa? Veja essa: o estupro não é um crime de violência e poder, como nos dizem os cientistas sociais, e sim movido exclusivamente pelo desejo sexual. Na verdade, nem sequer chega a constituir uma anormalidade: é um mecanismo usado pelo macho para espalhar seus genes.
Randy Thornhill, o biólogo da Universidade do Novo México em Albuquerque que propõe essa visão, está acostumado a suscitar polêmica. Mas até mesmo ele foi pego de surpresa pelo ultraje suscitado pelo livro "A Natural History of Rape" (História natural do estupro), que escreveu em colaboração com o antropólogo Craig Palmer para expor suas idéias. Será uma corajosa contestação da correção política ou um exemplo de pensamento darwiniano que se desviou para a loucura?

Parte de seu argumento de que o estupro é natural se baseia na idéia de que ele ocorre em muitas outras espécies. Até que ponto o estupro é amplamente presente?
Isso ainda não foi determinado, mas recentemente temos visto um aumento muito grande das pesquisas nessa área, envolvendo pássaros, insetos, primatas e assim por diante. Há sete anos, as pesquisas relativas ao estupro estavam mais ou menos paradas. Acho que os biólogos achavam o tema politicamente incorreto demais, mesmo em espécies de moscas.
Anos atrás você passou muito tempo estudando o estupro entre insetos, especialmente nas moscas-escorpião (Panorpa vulgaris). A que se deve a escolha desse inseto?
Eu observava e colecionava moscas-escorpião quando era criança e, quando era estudante na Universidade do Michigan, me interessei por seu comportamento de acasalamento. As fêmeas são interessantes porque é muito evidente que selecionam com cuidado o macho com o qual vão acasalar, e os machos são obrigados a competir entre si para conseguir copular com essas fêmeas discriminantes. Os machos têm duas opções: atrair as fêmeas, presenteando-as com alimentos e depois cruzando, ou estuprá-las.

Seu trabalho com insetos é altamente respeitado, mas muitos biólogos fazem críticas contundentes à aplicação de uma lógica evolutiva semelhante às complexidades do estupro humano.
Meu trabalho pode estar sendo aceito hoje, mas não é assim que foi visto inicialmente. Quando primeiro descobri a escolha ativa praticada pelas fêmeas de uma espécie de mosca, fui ridicularizado. Disseram que insetos são incapazes de fazer coisas desse tipo.
Mas a polêmica suscitada por sua análise evolucionária do estupro em humanos é muito maior, não é verdade?
Minha primeira experiência terrível foi no início dos anos 80. Fui convidado para dar uma palestra sobre a biologia evolutiva do estupro. O grupo feminista da cidade montou um piquete em frente ao local da palestra, com cartazes dizendo que a biologia violenta as mulheres e coisas desse tipo. No final, uma mulher se aproximou de mim e cuspiu no meu rosto.
Você afirma que o estupro entre os humanos, assim como entre as moscas-escorpião, é melhor compreendido como estratégia para passar adiante os genes do macho do que como expressão de violência masculina. Quais são as provas em que fundamenta seu argumento?
Uma das coisas que analisamos no livro é o índice de fertilização hoje associado ao estupro. Esse índice é muito alto em tempos de guerra. Estudos baseados em entrevistas com vítimas de estupro em zonas de guerra recentes, como a Bósnia, estimam que até 35% das vítimas de estupro engravidam.
Mas o índice de gravidez que você estima para tempos de paz é de apenas 2,5%. Levando-se em conta os riscos de punição, será que é do interesse reprodutivo do homem cometer estupros?
O livro apresenta duas hipóteses para explicar a ligação entre o estupro e a história evolutiva humana. Uma delas vê o estupro como estratégia que foi diretamente favorecida pela seleção natural, porque aumentava o êxito reprodutivo. Na outra hipótese, o estupro seria subproduto da adaptação sexual dos homens, não para o estupro, mas para obter múltiplas parceiras sem comprometimento de sua parte. O que é crucial é que nenhuma das hipóteses implica que o estupro promove o êxito reprodutivo hoje, apenas que o fez para nossos ancestrais.
Você afirma que o perfil etário das vítimas de estupro fundamenta seu ponto de vista. De que maneira?
A biologia prevê que os homens irão violentar principalmente mulheres jovens, atraentes e com alto grau de fertilidade. E é exatamente isso que os estudos indicam. Alguns dos críticos do livro afirmam que nos enganamos nesse ponto, porque idosas e crianças também são vítimas de estupro frequentes. Mas os números contam outra história. Estudos feitos com meninas de até 12 anos de idade revelam que, quanto mais velha a menina, maior o risco de que venha a ser violentada.
Mas será que as mulheres jovens não correm risco maior porque passam mais tempo saindo à noite e mantendo contato social com homens jovens e agressivos?
Esse fato não explicaria todas as observações. As estatísticas mostram que, quando um homem arromba o apartamento de uma mulher para roubar, a probabilidade de que estupre a mulher, além de roubá-la, é mais alta se ela for de idade reprodutiva. Se a principal motivação dos estupradores fosse o desejo de domínio social, poderíamos esperar que estuprassem preferencialmente mulheres mais velhas e poderosas -mas não é isso que acontece.
Você sugere que o estupro é um crime de paixão, não de violência. Como concilia isso com o fato de que muitos estupros envolvem violência extrema?
Não estou dizendo que não há violência envolvida. Um homem estupra porque sente desejo sexual e deseja a experiência sexual, mas precisa usar de violência para alcançar esse objetivo. O que o modelo evolutivo afirma é que os homens não vão usar mais violência do que é necessário. Isso porque os machos na história evolutiva que mataram suas vítimas também teriam anulado os possíveis benefícios reprodutivos de sua iniciativa. E essa previsão é respaldada por todos os estudos maiores que analisaram a quantidade de violência em estupros.
Você também afirma que mulheres jovens sofrem mais dor psicológica...
Essa constatação vem de muitas entrevistas com vítimas de estupro. Demonstramos que mulheres jovens relatam mais dor psicológica do que mulheres mais velhas ou meninas e vítimas casadas, mais dor psicológica do que as não casadas. O que se poderia prever é que as mulheres em idade reprodutiva sofrem mais porque têm mais a perder -podem engravidar ou perder seus parceiros. As mulheres casadas correm o risco de perder o investimento de seus maridos, porque o estupro reduz a confiança paterna do marido (a certeza de que o pai do filho é ele).
Será que um estuprador não vai ouvir essa tese e pensar "o que fiz não teve problema, mesmo a violência"? Seus advogados de defesa não poderiam alegar que seu cliente apenas obedeceu seus instintos naturais?
Se alguém me pedisse para ser testemunha especializada na defesa de um homem acusado de estupro, eu simplesmente reiteraria o que digo no livro: que o estupro pode ser natural, sim, mas que o que é natural não é necessariamente certo.
Qual a utilidade da biologia evolutiva quando se trata de impedir o estupro e prestar aconselhamento às vítimas?
As mulheres acharão mais úteis os conhecimentos reais sobre o estupro do que as teses ideologicamente baseadas que ouvem em centros de apoio. Por exemplo, podemos ter cursos educativos na qual as pessoas aprenderiam por que o relacionamento amoroso de uma vítima de estupro pode azedar: o parceiro da vítima pode estar reagindo ao estupro como se fosse uma infidelidade.


"A Natural History of Rape - Biological Bases of Sexual Coercion", Randy Thornhill e Craig T. Palmer. MIT Press. 272 págs. US$ 28,95.

Tradução de Clara Allain


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