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BIOLOGIA
Organismo com dezenas de células que vive em lagoas salobras do Rio se divide por inteiro, como seres mais complexos
Brasileiros acham bactéria multicelular
SALVADOR NOGUEIRA
DA REPORTAGEM LOCAL
Está nos livros de biologia: bactérias são organismos compostos
por uma única célula. Mas algumas criaturas encontradas em várias lagoas no Rio de Janeiro, apesar de terem todos os traços que
caracterizam uma bactéria, insistem em ser multicelulares. A descoberta, que torna muito mais sutil a fronteira entre seres vivos
simples e complexos, foi feita por
um grupo de brasileiros.
As bactérias são a forma de vida
mais elementar. Estão em toda
parte e sequer possuem um núcleo organizado para guardar seu
material genético. O DNA fica todo espalhado, boiando no citoplasma (o gel que contém todas as
organelas celulares).
Embora compostas por uma célula, em alguns casos as bactérias
vivem em colônias e têm um
"comportamento" conjunto. Mas
isso não é suficiente para caracterizá-las como multicelulares, pois
não há divisão clara de tarefas entre as células, elas conseguem sobreviver sozinhas e chegam até a
competir entre si.
Esse não é o caso do organismo
descrito por Carolina Keim, do
Instituto de Ciências Biomédicas
da UFRJ (Universidade Federal
do Rio de Janeiro), e seus colegas
num artigo publicado na edição
de março da revista científica
"Journal of Structural Biology"
(www.sciencedirect.com/science/journal/10478477).
A criatura foi encontrada em lugares como as lagoas de Araruama (a maior lagoa hipersalina do
mundo, com concentração de 7%
de sal na água), Maricá e Rodrigo
de Freitas (na capital fluminense).
"É isso aí, ela dá em qualquer lugar que tenha água salobra e uma
boa reserva de enxofre", diz Henrique Lins de Barros, do CBPF
(Centro Brasileiro de Pesquisas
Físicas), um dos autores. Também participaram das pesquisas
Marcos Farina, Radovan Borojevic, Fernanda Abreu, Ulysses
Lins, Juliana Martins e Alexandre
Rosado, todos da UFRJ.
Jeito de multicelular
O organismo consiste numa bolinha com umas 20 células. Cada
célula tem forma piramidal, e todas se dispõem lado a lado, com a
ponta voltada para o centro.
Na região central, há uma espécie de bolsa isolada, que permite o
compartilhamento de substâncias. Essas células nunca vivem
sozinhas e, aparentemente, tampouco fazem concorrência umas
para as outras.
"A tendência atual é olhar com
muito cuidado a questão da multicelularidade", diz Lins de Barros. "No caso desses organismos,
tentamos mostrar que satisfazem
os critérios mais rígidos. Temos
um exemplo de organismo bacteriano que satisfaz as condições
impostas a um multicelular."
Para Keim, é fácil entender de
onde vem a confusão. "A fronteira entre organismos unicelulares
e multicelulares é artificial", diz.
"Na verdade, não temos uma
fronteira, mas duas tendências:
uma é a complexidade, principalmente em animais e plantas, que
possuem vários tipos de célula especializada, que trabalham sempre em conjunto. No extremo
oposto, temos outro estilo de vida, muito mais simples, formado
pelos microorganismos unicelulares. Entre as duas tendências,
uma miríade de formas diferentes. Pensamos que esse organismo está entre esses dois opostos."
Um dos grandes enigmas da
biologia é o surgimento dos organismos multicelulares. Por bilhões de anos, só houve vida bacteriana na Terra. Então, de repente, formas complexas de cooperação entre células começaram a
surgir. O resultado foi o aparecimento das criaturas multicelulares, cuja complexidade crescente
conduziu aos animais e ao homem. Ninguém sabe se esse salto
evolutivo foi fortuito ou não.
A descoberta faz supor que talvez a complexidade seja uma tendência natural -ainda que tarde
a surgir. "Os organismos multicelulares tiveram várias origens independentes durante a evolução",
diz Keim. "Tudo indica que esse
organismo é representante de
mais uma origem independente."
"Se olharmos a "Árvore da Vida", veremos que existe um "gap"
[lacuna]", diz Lins de Barros.
"De um lado estão todas as bactérias unicelulares. Do outro, a árvore se abre em diferentes galhos
e dá origem a organismos cada
vez mais complexos. Acho que
nossos organismos estão numa
ramificação ausente na representação atual. Trata-se de uma tentativa, bem-sucedida, de bactérias
aumentarem a complexidade e se
organizarem de forma a originar
um organismo multicelular."
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