São Paulo, domingo, 12 de julho de 2009

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+ Marcelo Leite

A extinção da noite


O povo da astronomia está preocupado com o excesso de luz


Pode-se discutir à exaustão se algo deixa de existir quando não há olhos humanos para vê-lo. Parece mais sensato concluir que tudo continua a existir, mesmo na falta de um observador. Mas quão sensato seria haver olhos e não poder contemplar um objeto por excesso de luz? O objeto é a Via Láctea, e a insensatez ocorre nos dias de hoje. Melhor dizendo, nas noites de hoje. Melhor ainda: nas noites brancas de hoje. Se você mora numa cidade grande -São Paulo, Rio, Ribeirão Preto, tanto faz- olhe esta noite para o céu. Se não estiver chovendo nem nublado, e dependendo da hora, poderá deliciar-se com a lua minguante, ainda bem cheia. Caso ela não tenha nascido, sempre há o espetáculo da Via Láctea -Caminho da Anta, para os índios- para encher os olhos. O problema é que você verá muito pouco da Via Láctea, se vir. Assim como o luar satura o firmamento de luz e obscurece a visão de objetos mais tênues, como os zilhões de estrelas de nossa galáxia, a iluminação pública apaga o breu do céu. A maior parte da população brasileira vive hoje em cidades e já se habituou por isso a não mais olhar para cima. Para nós, assim como para um terço das pessoas do mundo, a Via Láctea deixou de existir. A noite está em extinção. Não precisa permanecer assim, contudo. Quem me convenceu disso foi o astrônomo Augusto Damineli Neto, da USP. Ele está envolvido na organização de atividades do Ano Internacional de Astronomia 2009, como as Maratonas da Via Láctea. A próxima começa sábado e vai até dia 26, para aproveitar a lua nova (veja calendário de eventos em www.astronomia2009.org.br). Faz parte de uma campanha de conscientização sobre poluição luminosa. O povo da astronomia está preocupado com o excesso de luz. Para eles, é caso de vida ou morte profissional. Mesmo operando telescópios em locais distantes de centros urbanos e sem nebulosidade, como o límpido deserto chileno de Atacama, perdem boa parte do tempo filtrando as frequências da luz artificial desperdiçada por nós no espaço. Sim, desperdiçada. Iluminação pública existe para clarear o caminho das pessoas e aumentar a seguranças nas ruas, portanto toda a sua luz deveria incidir sobre o chão. Qualquer luminosidade que escapar para cima da luminária -30%, dizem os astrônomos- terá sido gasta à toa. Segundo Damineli, isso dá coisa de R$ 1 bilhão por ano no Brasil. Não seria preciso trocar todas as luminárias. Bastaria na maioria dos casos mudar o ângulo do braço que as prende nos postes, para que fiquem paralelas ao chão. Além disso, circundar com uma cinta de alumínio a parte de vidro que excede o limite do corpo de metal, como uma saia que impeça o escape de luz para os lados e para cima. O céu, assim, ficaria muito mais escuro. Para os astrônomos e para todos nós. Como ficou para o astrônomo alemão Walter Baade (1893-1960) durante os blecautes de Los Angeles na Segunda Guerra Mundial. Não naturalizado americano, Baade ficou confinado ao Observatório do monte Wilson, no Estado da Califórnia. Nessas condições ímpares, recenseou todas as estrelas que estavam no centro da galáxia de Andrômeda -seu maior feito científico. As estrelas de Andrômeda estavam todas lá, no céu, ou pelo menos sua luz. Faltavam olhos atentos o bastante para procurá-las, encontrá-las e medi-las, armados com um telescópio potente. E alguma escuridão, essencial para se enxergar mais longe.


MARCELO LEITE é autor de "Folha Explica Darwin" (Publifolha, 2009) e do livro de ficção infanto-juvenil "Fogo Verde" (Editora Ática, 2009), sobre biocombustíveis e florestas. Blog: Ciência em Dia ( cienciaemdia.folha.blog.uol.com.br ). E-mail: cienciaemdia.folha@uol.com.br


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