São Paulo, domingo, 13 de abril de 2008

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+ Marcelo Gleiser

Verdades relativas


O conhecimento científico é cumulativo, dependente de novas tecnologias e idéias

Na semana passada, quando dava uma aula sobre o sistema astronômico do alexandrino Ptolomeu, que viveu em torno de 150 d. C., uma estudante perguntou: "Professor, esse sistema de epiciclos está todo errado, não?" A resposta imediata -e incorreta- é: "Claro, todo mundo sabe que esses círculos imaginários não existem nos céus". A resposta correta é bem mais sutil. Nas ciências naturais, certo, errado, verdadeiro ou falso são condições que muitas vezes devem ser interpretadas no contexto em que foram determinadas. Coisas que nos parecem erradas hoje eram consideradas certas no passado.

Para quem não estava na minha aula, Ptolomeu é famoso por ter proposto um modelo completo dos movimentos celestes, capaz de prever as posições futuras do Sol, da Lua e dos seis planetas conhecidos então com uma precisão aproximada de duas luas cheias, um feito muito acima de qualquer outro modelo celeste da Antigüidade. Se alguém queria saber, por exemplo, onde Marte estaria em dois meses, ou dois anos, bastava usar o modelo de Ptolomeu para calcular a sua posição futura.
Para os astrólogos, precisão era sinônimo de sucesso: quanto mais preciso o modelo, melhores seriam as previsões astrológicas derivadas dele.
O modelo ptolomaico, com a Terra no centro (ou quase), era tão eficiente que sobreviveu, com pequenas alterações feitas por astrônomos árabes, até meados de 1500, quando entram em cena Copérnico e Ticho Brahe.
Portanto, para um astrônomo do século 6 ou 12, o modelo de Ptolomeu era a verdade. Não que as pessoas imaginassem que os planetas estavam presos a círculos que, por sua vez, estavam presos a outros círculos que giravam nos céus. O objetivo de Ptolomeu não era explicar as causas dos movimentos celestes, como seria o caso com Kepler e Newton no século 17, quando foi proposta a força da gravidade. Na época de Ptolomeu, não existia essa preocupação com causas.
A pergunta "mas o que causa os movimentos celestes?" não fazia parte do discurso científico. Bastavam modelos capazes de prever as posições planetárias com precisão, mesmo sendo compostos de círculos imaginários.
Com Kepler e Newton, ficou claro que as órbitas planetárias em torno do Sol eram resultado de uma atração invisível. Em 1609, Kepler propôs que essa atração era de origem magnética.
E, de quebra, que as órbitas não eram circulares, mas elípticas. Em 1686, Newton mostrou que a força era a gravitacional, a mesma que faz uma maçã cair no chão. O enorme sucesso e a enorme precisão da teoria newtoniana rapidamente tornaram-na a verdade sobre o cosmo. Objetos com massa exercem uma força mútua que cai com o quadrado da distância entre eles. Essa foi a "verdade" até 1916.
Naquele ano, Einstein propôs uma nova teoria da gravidade, na qual a atração entre dois corpos era conseqüência da curvatura do espaço entre eles. A massa deforma o espaço e a aceleração atribuída à força gravitacional vem do movimento nesse espaço curvo. Essa é a nossa "verdade".
Mas sabemos, ou ao menos deveríamos saber, que essa história não tem fim. Excluindo as verdades matemáticas do tipo 2 + 2 = 4, o conhecimento científico é cumulativo, dependente do desenvolvimento de novas tecnologias e idéias. Nossas verdades sobre a natureza permanecem verdadeiras até que alguém demonstre que elas são aproximações incompletas. No mínimo, essa perspectiva deveria nos ensinar a defender nossas verdades temporárias com a humildade de quem aprende com o passado.


MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA) e autor do livro "A Harmonia do Mundo"

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