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+ Marcelo Gleiser
Verdades relativas
O conhecimento científico é cumulativo, dependente de novas tecnologias e idéias
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Na semana passada, quando dava uma aula sobre o sistema
astronômico do alexandrino
Ptolomeu, que viveu em torno de 150
d. C., uma estudante perguntou: "Professor, esse sistema de epiciclos está
todo errado, não?" A resposta imediata -e incorreta- é: "Claro, todo mundo sabe que esses círculos imaginários não existem nos céus". A resposta correta é bem mais sutil. Nas ciências naturais, certo, errado, verdadeiro ou falso são condições que muitas vezes
devem ser interpretadas no contexto
em que foram determinadas. Coisas
que nos parecem erradas hoje eram
consideradas certas no passado.
Para quem não estava na minha aula, Ptolomeu é famoso por ter proposto um modelo completo dos movimentos celestes, capaz de prever as
posições futuras do Sol, da Lua e dos
seis planetas conhecidos então com
uma precisão aproximada de duas
luas cheias, um feito muito acima de
qualquer outro modelo celeste da Antigüidade. Se alguém queria saber, por
exemplo, onde Marte estaria em dois
meses, ou dois anos, bastava usar o
modelo de Ptolomeu para calcular a
sua posição futura.
Para os astrólogos, precisão era sinônimo de sucesso: quanto mais preciso o modelo, melhores seriam as
previsões astrológicas derivadas dele.
O modelo ptolomaico, com a Terra no
centro (ou quase), era tão eficiente
que sobreviveu, com pequenas alterações feitas por astrônomos árabes, até
meados de 1500, quando entram em
cena Copérnico e Ticho Brahe.
Portanto, para um astrônomo do
século 6 ou 12, o modelo de Ptolomeu
era a verdade. Não que as pessoas imaginassem que os planetas estavam
presos a círculos que, por sua vez, estavam presos a outros círculos que giravam nos céus. O objetivo de Ptolomeu não era explicar as causas dos
movimentos celestes, como seria o caso com Kepler e Newton no século 17,
quando foi proposta a força da gravidade. Na época de Ptolomeu, não existia essa preocupação com causas.
A pergunta "mas o que causa os movimentos celestes?" não fazia parte do
discurso científico. Bastavam modelos capazes de prever as posições planetárias com precisão, mesmo sendo compostos de círculos imaginários.
Com Kepler e Newton, ficou claro
que as órbitas planetárias em torno do
Sol eram resultado de uma atração invisível. Em 1609, Kepler propôs que
essa atração era de origem magnética.
E, de quebra, que as órbitas não eram
circulares, mas elípticas. Em 1686,
Newton mostrou que a força era a gravitacional, a mesma que faz uma maçã
cair no chão. O enorme sucesso e a
enorme precisão da teoria newtoniana rapidamente tornaram-na a verdade sobre o cosmo. Objetos com massa
exercem uma força mútua que cai
com o quadrado da distância entre
eles. Essa foi a "verdade" até 1916.
Naquele ano, Einstein propôs uma
nova teoria da gravidade, na qual a
atração entre dois corpos era conseqüência da curvatura do espaço entre
eles. A massa deforma o espaço e a
aceleração atribuída à força gravitacional vem do movimento nesse espaço curvo. Essa é a nossa "verdade".
Mas sabemos, ou ao menos deveríamos saber, que essa história não tem
fim. Excluindo as verdades matemáticas do tipo 2 + 2 = 4, o conhecimento
científico é cumulativo, dependente
do desenvolvimento de novas tecnologias e idéias. Nossas verdades sobre
a natureza permanecem verdadeiras
até que alguém demonstre que elas
são aproximações incompletas. No
mínimo, essa perspectiva deveria nos
ensinar a defender nossas verdades
temporárias com a humildade de
quem aprende com o passado.
MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA) e autor do livro "A Harmonia do Mundo"
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