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+ Marcelo Gleiser
A célula e o tribunal
Pesquisa com embrião deve ser debatida sem viés religioso
Dia 20 de abril de 2007 ficará registrado como a data em que o
Supremo Tribunal Federal
(STF) realizou, pela primeira vez nos
seus 178 anos de história, uma audiência pública. Nada como a transparência para alavancar o processo democrático que, sem ela, é inviável. A pauta não poderia ter sido mais apropriada e relevante: a decisão sobre o uso
de células-tronco embrionárias nas
pesquisas que visam desenvolver curas para uma série de doenças que matam ou incapacitam milhões de pessoas, do mal de Parkinson e do diabetes às paralisias causadas por danos à
medula espinhal.
Fiquei orgulhoso quando soube que
96% dos senadores e 85% dos deputados federais aprovaram a passagem da
Lei de Biossegurança em 2005, e que o
Presidente da República fez o mesmo.
Decisões como esta estão sendo duplicadas pelo mundo afora, pelo menos
nos países que levam a pesquisa científica a sério, dada a promessa clínica
desses futuros tratamentos.
Mas meu orgulho durou pouco. Foi
durante a sessão aberta do STF, onde
34 cientistas foram convidados para
depor sobre a questão das células-tronco e suas implicações éticas, que a
natureza do processo ficou clara.
Primeiro, é importante lembrar que
a lei parou no STF devido à ação do
subprocurador-geral da República,
Cláudio Fonteles, que a considera inconstitucional. Seu argumento, semelhante ao de grupos conservadores
aliados da Igreja Católica, é que assim
que o espermatozóide funde-se ao
óvulo, está se falando de um ser vivo:
destruir o embrião para extrair-lhe as
células-tronco seria assassiná-lo.
A questão debatida assiduamente
pelos cientistas, e que monopoliza a
opinião pública, é determinar onde
começa a vida. Entretanto, a resposta
é completamente irrelevante para este debate. Isto por que não se está propondo a criação de fábricas de embriões para extração de suas células-tronco, a clonagem de humanos ou
outros cenários funestos que incitam
os piores pesadelos de livros e filmes
de ficção científica.
O que se propõe é a utilização dos
embriões que seriam descartados por
clínicas de reprodução por serem inviáveis, como argumentou a pró-reitora de pesquisa da USP, a geneticista
Mayana Zatz.
Que fim mais digno pode ter um
embrião condenado à destruição do
que participar de uma pesquisa que
tem o potencial de salvar milhões de
pessoas? A escolha me parece semelhante, ao menos em parte, à dos que
doam seus órgãos para transplantes.
Ao menos partes de seus corpos poderão ajudar aqueles em necessidade,
em vez de apodrecerem sob a terra ou
de serem cremadas.
Focar o debate constitucional na
questão de onde começa a vida é desviá-lo para o inevitável conflito religioso, tirando seu mérito científico.
Não surpreende que Fonteles, franciscano, tenha acusado a doutora
Zatz, judia, de ser influenciada por sua
religião, que diria que a vida começa
no nascimento e não na fecundação.
Ora, é claro então que a posição de
Fonteles é baseada em sua fé e não em
qualquer consideração científica. A
primeira audiência pública do STF,
um momento histórico para o Brasil,
transformou-se numa troca de acusações de cunho religioso. Enquanto isso, milhões de pessoas continuam
morrendo e os embriões apodrecendo
nos congeladores ou no lixo.
A questão do uso de embriões decretados inviáveis para reprodução na
pesquisa médica deve ser separada da
questão religiosa. A missão da ciência
é aliviar o sofrimento humano. A da
religião também. A única inconstitucionalidade aqui é ir contra os votos
dos representantes do povo e impedir
que essa missão seja cumprida.
MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA) e autor do livro "A Harmonia do Mundo"
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