São Paulo, domingo, 13 de maio de 2007

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Pescador de moléculas

Caiçara que virou cientista da USP busca em seres marinhos novas armas contra a dor

EDUARDO GERAQUE
DA REPORTAGEM LOCAL

A bordo de um caiaque motorizado inventado por ele, o caiçara José Carlos de Freitas já passeou muito pelas águas de São Sebastião, litoral norte de São Paulo, sua terra natal. Hoje, no Instituto de Biociências da USP, entre as quatro paredes do seu laboratório, o pesquisador ocupa seu tempo trabalhando com o resultado de sua pescaria científica.
Entre moléculas extraídas de anêmonas, plantas ou moluscos, ele tenta encontrar novas substâncias que sejam eficientes no controle de alguns males humanos, como a dor. A busca está perto de dar resultado.
"Já isolamos uma molécula da anêmona-do-mar que revelou ter uma propriedade analgésica muito grande. Ela está sendo estudada no [Instituto] Butantan", explica.
Outros caminhos farmacológicos foram abertos pela equipe de Freitas na USP a partir de moluscos e em plantas.
No primeiro caso, apesar de o projeto ser o primeiro a estudar isso no Brasil, mais precisamente com animais de Fernando de Noronha, existe uma corrida para tentar chegar na frente de grupos internacionais. Nos Estados Unidos, a mesma substância está sendo estudada pela indústria. Ela bloqueia a dor nas células nervosas.
Em relação às plantas, outra constatação: a espécie estudada pelo cientista caiçara é a mesma usada nas praias do Brasil, de forma tradicional, para também aliviar a dor.
Freitas diz não ter dúvida: nascer na beira do mar e passar a infância na mata atlântica foram ingredientes definitivos para transformá-lo em um pescador de moléculas.
"O fato de primeiro ter optado pela biologia tem tudo a ver, sem dúvida, com a mata atlântica", diz o cientista.
Opção feita, a segunda escolha profissional -ficar perto do mar- também está relacionada com os primeiros anos de vida do cientista. "Depois da mata, a costa foi o lugar onde eu mais vivi", explica.
O professor da USP é filho de Messias da Cruz Freitas, que trabalhava como zelador da Companhia de Melhoramentos de São Sebastião, pequena empresa de saneamento.
Também caiçara (como são chamadas as populações tradicionais do litoral paulista) mas de Ilhabela, outro município do litoral norte paulista, Cruz Freitas levou toda a família para morar na mata atlântica.
"Meu pai tinha apenas o primário. Ele plantava milho e feijão. Lembro que agente não tinha geladeira. A comida tinha de ser preparada e consumida logo depois. Na serra, convivia com as serpentes, com os insetos e com as aves. Gostava de ir aos riachos. De pegar lagosta."
"Havia poucas pessoas morando na mata naquele tempo. Hoje não seria mais possível todos viverem da floresta, porque tudo seria ainda mais rapidamente destruído", explica Freitas, o filho.
Os estudos primário e secundário em São Sebastião ficaram facilitados depois que a família mudou para a cidade. Anos mais tarde, o jovem caiçara conheceu a figura do professor Paulo Sawaya (1903-1995), da USP. Partiu do pesquisador não apenas o convite para freqüentar o Cebimar (Centro de Biologia Marinha) como, depois, para Freitas começar a fazer pesquisas na USP, quando já era aluno da universidade.
"Cheguei à USP em 1968. Dava aulas em 11 lugares diferentes para conseguir pagar o aluguel. Durante uma época morei até aqui, neste mesmo prédio, em um apartamento que era destinado para pesquisadores estrangeiros".
No terceiro casamento, e com dois filhos de mães diferentes, Freitas acredita que a vida é feita de momentos felizes. "Em julho vou me aposentar e voltarei a morar em São Sebastião, na praia dos Trabalhadores (Praia Grande para os íntimos)", avisa o pesquisador, de 59 anos, sorrindo. A pescaria molecular, no entanto, não pára. Ao contrário: sem tantas obrigações acadêmicas, Freitas diz que poderá dedicar mais tempo à pesquisa.

Sinal dos tempos
A depender do ano passado, quando Freitas voltou pela primeira vez para o trecho da serra do mar onde ele morou, as reminiscências da terra natal vão ficar cada vez mais presentes em sua vida. "Eu e meu irmão conseguimos achar algumas paredes da casa ainda em pé. A floresta cresceu. Os riachos estavam até que meio entupidos, mas confesso que senti algumas vibrações boas por lá."
Sinal dos tempos: as trilhas do passado que o caiçara percorria com medo à noite, voltando da escola, hoje estão todas fechadas. "A Petrobras, depois que chegou na região nos anos 1960, acabou fechando todos os acessos para o local onde eu morava", relembra Freitas, que também assistiu várias outras alterações ambientais na sua cidade ao longo das últimas cinco décadas. "Encontrar algumas espécies de ouriço, hoje, é muito mais difícil do que antes, por exemplo". Apesar de ele ainda ir coletar esses bichos de caiaque, agora a remo.


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