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Pescador de moléculas
Caiçara que virou cientista da USP busca em seres marinhos novas armas contra a dor
EDUARDO GERAQUE
DA REPORTAGEM LOCAL
A
bordo de um caiaque motorizado inventado por ele, o
caiçara José Carlos
de Freitas já passeou muito pelas águas de São
Sebastião, litoral norte de São
Paulo, sua terra natal. Hoje, no
Instituto de Biociências da
USP, entre as quatro paredes
do seu laboratório, o pesquisador ocupa seu tempo trabalhando com o resultado de sua
pescaria científica.
Entre moléculas extraídas de
anêmonas, plantas ou moluscos, ele tenta encontrar novas
substâncias que sejam eficientes no controle de alguns males
humanos, como a dor. A busca
está perto de dar resultado.
"Já isolamos uma molécula
da anêmona-do-mar que revelou ter uma propriedade analgésica muito grande. Ela está
sendo estudada no [Instituto]
Butantan", explica.
Outros caminhos farmacológicos foram abertos pela equipe de Freitas na USP a partir de
moluscos e em plantas.
No primeiro caso, apesar de
o projeto ser o primeiro a estudar isso no Brasil, mais precisamente com animais de Fernando de Noronha, existe uma corrida para tentar chegar na frente de grupos internacionais.
Nos Estados Unidos, a mesma
substância está sendo estudada
pela indústria. Ela bloqueia a
dor nas células nervosas.
Em relação às plantas, outra
constatação: a espécie estudada pelo cientista caiçara é a
mesma usada nas praias do
Brasil, de forma tradicional,
para também aliviar a dor.
Freitas diz não ter dúvida:
nascer na beira do mar e passar
a infância na mata atlântica foram ingredientes definitivos
para transformá-lo em um pescador de moléculas.
"O fato de primeiro ter optado pela biologia tem tudo a ver,
sem dúvida, com a mata atlântica", diz o cientista.
Opção feita, a segunda escolha profissional -ficar perto do
mar- também está relacionada com os primeiros anos de vida do cientista. "Depois da mata, a costa foi o lugar onde eu
mais vivi", explica.
O professor da USP é filho de
Messias da Cruz Freitas, que
trabalhava como zelador da
Companhia de Melhoramentos de São Sebastião, pequena
empresa de saneamento.
Também caiçara (como são
chamadas as populações tradicionais do litoral paulista) mas
de Ilhabela, outro município
do litoral norte paulista, Cruz
Freitas levou toda a família para morar na mata atlântica.
"Meu pai tinha apenas o primário. Ele plantava milho e feijão. Lembro que agente não tinha geladeira. A comida tinha
de ser preparada e consumida
logo depois. Na serra, convivia
com as serpentes, com os insetos e com as aves. Gostava de ir
aos riachos. De pegar lagosta."
"Havia poucas pessoas morando na mata naquele tempo.
Hoje não seria mais possível
todos viverem da floresta, porque tudo seria ainda mais rapidamente destruído", explica
Freitas, o filho.
Os estudos primário e secundário em São Sebastião ficaram
facilitados depois que a família
mudou para a cidade. Anos
mais tarde, o jovem caiçara conheceu a figura do professor
Paulo Sawaya (1903-1995), da
USP. Partiu do pesquisador
não apenas o convite para freqüentar o Cebimar (Centro de
Biologia Marinha) como, depois, para Freitas começar a fazer pesquisas na USP, quando
já era aluno da universidade.
"Cheguei à USP em 1968. Dava aulas em 11 lugares diferentes para conseguir pagar o aluguel. Durante uma época morei
até aqui, neste mesmo prédio,
em um apartamento que era
destinado para pesquisadores
estrangeiros".
No terceiro casamento, e
com dois filhos de mães diferentes, Freitas acredita que a
vida é feita de momentos felizes. "Em julho vou me aposentar e voltarei a morar em São
Sebastião, na praia dos Trabalhadores (Praia Grande para os
íntimos)", avisa o pesquisador,
de 59 anos, sorrindo. A pescaria molecular, no entanto, não
pára. Ao contrário: sem tantas
obrigações acadêmicas, Freitas
diz que poderá dedicar mais
tempo à pesquisa.
Sinal dos tempos
A depender do ano passado,
quando Freitas voltou pela primeira vez para o trecho da serra
do mar onde ele morou, as reminiscências da terra natal vão
ficar cada vez mais presentes
em sua vida. "Eu e meu irmão
conseguimos achar algumas
paredes da casa ainda em pé. A
floresta cresceu. Os riachos estavam até que meio entupidos,
mas confesso que senti algumas vibrações boas por lá."
Sinal dos tempos: as trilhas
do passado que o caiçara percorria com medo à noite, voltando da escola, hoje estão todas fechadas. "A Petrobras, depois que chegou na região nos
anos 1960, acabou fechando todos os acessos para o local onde
eu morava", relembra Freitas,
que também assistiu várias outras alterações ambientais na
sua cidade ao longo das últimas
cinco décadas. "Encontrar algumas espécies de ouriço, hoje,
é muito mais difícil do que antes, por exemplo". Apesar de ele
ainda ir coletar esses bichos de
caiaque, agora a remo.
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