São Paulo, terça-feira, 13 de junho de 2006

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MEMÓRIA

Um homem apaixonado, sobretudo

FRANCISCO CARUSO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O Brasil se tornou intelectualmente mais pobre na manhã de ontem, com a perda inestimável de um de seus maiores cientistas, o físico recifense José Leite Lopes.
Em sua vasta obra científica, Leite Lopes teve muitos interesses, dos quais destacam-se o estudo do elétron e suas interações -tema que lhe foi oferecido por Mario Schenberg no início de sua carreira e a tentativa de unificar as interações fracas responsáveis pela radioatividade e as eletromagnéticas.
Em 1958, publicou na prestigiosa revista "Nuclear Physics" a primeira avaliação correta da massa dos bósons vetoriais. Nesse artigo, apresenta a hipótese de que existiria uma partícula neutra 40 a 60 vezes mais pesada do que o próton a mediar as interações fracas, assim como o fóton é o mediador das interações eletromagnéticas. Essa conjectura, orientada, segundo seu próprio testemunho, pela busca da beleza nas leis da natureza, estava muito além de seu tempo e foi um passo muito importante para a unificação das forças eletrofracas, lembrado na palestra dada pelo físico norte- americano Steven Weinberg por ocasião de seu Prêmio Nobel, em 1979.
Leite doutorou-se em Princeton com Wolfgang Pauli e, cerca de uma década depois, trabalhou com Richard Feynman, ambos Prêmios Nobel de Física. O reconhecimento acadêmico de sua obra é evidente pelos títulos honoríficos concedidos por instituições do governo francês, que lhe concedeu a Ordem Nacional do Mérito em 1989, e a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura), que lhe deu o Prêmio Unesco de Ciências em 1999.
Entretanto, a verdadeira dimensão da perda não está aqui. Lembrei-me, então, das palavras de Icilio Guareschi a propósito do grande Amedeo Avogadro: "Os grandes méritos de um homem não devem tanto ser medidos pelo valor intrínseco de sua obra, quanto pela influência que tiveram sobre seus contemporâneos e, sobretudo, sobre o futuro da ciência".
Se devesse defini-lo com apenas um adjetivo, escolheria apaixonado. Sua paixão era transcendente; ultrapassava em muito as fronteiras da ciência, espalhando-se pela educação, pela cultura, pela arte e, por que não dizer, pelas mulheres e pela vida. Foi essa paixão que sempre nutriu seu intelecto vivaz e contagiante. Foi ela o motor da dedicação integral de toda sua vida à criação de um ambiente propício ao desenvolvimento científico no Brasil, à criação de um país mais justo, muitas vezes opondo-se ao poder de forma contundente.
Nesse sentido, Leite tinha um espírito bruniano. Assim como o pensador italiano Giordano Bruno, não media palavras para combater as autoridades constituídas, as arbitrariedades, a manutenção do status quo, tampouco as poupava para defender a verdade, o pensamento científico, a mudança.
Seu humanismo refletiu-se em tudo que fez: na sua permanente preocupação com o papel ético e social do cientista, na formação dos jovens, na sua pintura ou falando de amor.
Leite foi um daqueles jovens que tiveram a sorte de encontrar um ótimo professor durante sua formação básica. Seu grande mestre Luiz Freire, por quem tinha grande admiração e respeito, talvez sem saber, marcou aquele rapaz com seu espírito de educador, de tal modo que o tempo não foi capaz de apagar essa influência.
Durante toda sua carreira universitária, iniciada aos 27 anos com sua nomeação como Professor de Física Teórica e Superior da Faculdade Nacional de Filosofia do Rio de Janeiro, Leite sempre esteve preocupado com a qualidade da formação dos alunos. Para ele, ensino e pesquisa eram realmente indissociáveis. Por exemplo, em 1960, organizou a 2ª Escola Latino-Americana de Física no Rio e sugeriu ao Ministério das Relações Exteriores e à Unesco a criação de um Centro Latino-Americano de Física, que acabou se concretizando. Entre 1962 e 1964, foi organizador e coordenador do Instituto de Física da Universidade de Brasília, aceitando o desafio de implantar uma nova universidade, diferente de tudo o que havia sido tentado no Brasil, mas tristemente interrompida pelo golpe militar.
Preocupou-se sempre com a educação e com o papel social do cientista, como atestam suas publicações. Deixou 22 livros, entre muitos livros-texto e livros com suas reflexões sobre Ciência, além de uma centena de artigos sobre educação e política científica.
Outra preocupação constante de Leite, que influenciou muitos colegas e futuros cientistas, foi a de colocar o país na vanguarda da pesquisa científica. Neste sentido, em 1949, juntamente com César Lattes e outros, e com o apoio do Ministro João Alberto Lins de Barros, de Nelson e de Henry British Lins de Barros, fundou o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas.
Tendo sido aposentado compulsoriamente da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 1969, por decreto governamental baseado no AI-5, foi professor visitante na Universidade de Pittsburgh (EUA) durante o ano acadêmico 1969-70. Demitido mais tarde do CBPF, ainda durante a ditadura, foi professor visitante da Universidade de Strasbourg 1, Université Louis Pasteur, de 1970 a 1974 e, no ano em que lá chegou, fundou, com Michel Paty e outros, os seminários sobre Fundamentos da Ciência, que, mais tarde, deram origem à revista "Fundamenta Scientiae".
Até 1981 fez uma carreira brilhante na França e voltou ao Brasil para o centro que havia fundado, mas não em definitivo. Somente em 1986, após ser convidado pelo então Ministro de Ciência e Tecnologia, Renato Archer, para dirigir o CBPF, retornou de vez ao Brasil.
Terminado seu mandato, Leite ocupou-se de dar conferências, pintar e escrever suas memórias. Mais sobre sua obra pode ser encontrado na sua Biblioteca Virtual (www4.prossiga.br/Lopes/).
Leite nos deixa também um dos mais importantes arquivos sobre a história da ciência no Brasil; mas deixa, mais do que tudo, no coração de cada um que o conheceu, seu exemplo e saudades de um homem honesto, generoso, crítico, perspicaz, irônico, inquieto e, sobretudo, apaixonado.


Francisco Caruso é pesquisador CBPF e da Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), e editor do livro "José Leite Lopes: Idéias e Paixões" (1999)

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