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MEMÓRIA
Um homem apaixonado, sobretudo
FRANCISCO CARUSO
ESPECIAL PARA A FOLHA
O Brasil se tornou intelectualmente mais pobre na manhã de ontem, com a perda
inestimável de um de seus
maiores cientistas, o físico recifense José Leite Lopes.
Em sua vasta obra científica,
Leite Lopes teve muitos interesses, dos quais destacam-se o
estudo do elétron e suas interações -tema que lhe foi oferecido por Mario Schenberg no início de sua carreira e a tentativa
de unificar as interações fracas
responsáveis pela radioatividade e as eletromagnéticas.
Em 1958, publicou na prestigiosa revista "Nuclear Physics"
a primeira avaliação correta da
massa dos bósons vetoriais.
Nesse artigo, apresenta a hipótese de que existiria uma partícula neutra 40 a 60 vezes mais
pesada do que o próton a mediar as interações fracas, assim
como o fóton é o mediador das
interações eletromagnéticas.
Essa conjectura, orientada, segundo seu próprio testemunho,
pela busca da beleza nas leis da
natureza, estava muito além de
seu tempo e foi um passo muito
importante para a unificação
das forças eletrofracas, lembrado na palestra dada pelo físico
norte- americano Steven
Weinberg por ocasião de seu
Prêmio Nobel, em 1979.
Leite doutorou-se em Princeton com Wolfgang Pauli e,
cerca de uma década depois,
trabalhou com Richard Feynman, ambos Prêmios Nobel de
Física. O reconhecimento acadêmico de sua obra é evidente
pelos títulos honoríficos concedidos por instituições do governo francês, que lhe concedeu a
Ordem Nacional do Mérito em
1989, e a Unesco (Organização
das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura), que
lhe deu o Prêmio Unesco de
Ciências em 1999.
Entretanto, a verdadeira dimensão da perda não está aqui.
Lembrei-me, então, das palavras de Icilio Guareschi a propósito do grande Amedeo Avogadro: "Os grandes méritos de
um homem não devem tanto
ser medidos pelo valor intrínseco de sua obra, quanto pela
influência que tiveram sobre
seus contemporâneos e, sobretudo, sobre o futuro da ciência".
Se devesse defini-lo com apenas um adjetivo, escolheria
apaixonado. Sua paixão era
transcendente; ultrapassava
em muito as fronteiras da ciência, espalhando-se pela educação, pela cultura, pela arte e,
por que não dizer, pelas mulheres e pela vida. Foi essa paixão
que sempre nutriu seu intelecto vivaz e contagiante. Foi ela o
motor da dedicação integral de
toda sua vida à criação de um
ambiente propício ao desenvolvimento científico no Brasil, à
criação de um país mais justo,
muitas vezes opondo-se ao poder de forma contundente.
Nesse sentido, Leite tinha
um espírito bruniano. Assim
como o pensador italiano Giordano Bruno, não media palavras para combater as autoridades constituídas, as arbitrariedades, a manutenção do status quo, tampouco as poupava
para defender a verdade, o pensamento científico, a mudança.
Seu humanismo refletiu-se
em tudo que fez: na sua permanente preocupação com o papel
ético e social do cientista, na
formação dos jovens, na sua
pintura ou falando de amor.
Leite foi um daqueles jovens
que tiveram a sorte de encontrar um ótimo professor durante sua formação básica. Seu
grande mestre Luiz Freire, por
quem tinha grande admiração e
respeito, talvez sem saber, marcou aquele rapaz com seu espírito de educador, de tal modo
que o tempo não foi capaz de
apagar essa influência.
Durante toda sua carreira
universitária, iniciada aos 27
anos com sua nomeação como
Professor de Física Teórica e
Superior da Faculdade Nacional de Filosofia do Rio de Janeiro, Leite sempre esteve
preocupado com a qualidade da
formação dos alunos. Para ele,
ensino e pesquisa eram realmente indissociáveis. Por
exemplo, em 1960, organizou a
2ª Escola Latino-Americana de
Física no Rio e sugeriu ao Ministério das Relações Exteriores e à Unesco a criação de um
Centro Latino-Americano de
Física, que acabou se concretizando. Entre 1962 e 1964, foi
organizador e coordenador do
Instituto de Física da Universidade de Brasília, aceitando o
desafio de implantar uma nova
universidade, diferente de tudo
o que havia sido tentado no
Brasil, mas tristemente interrompida pelo golpe militar.
Preocupou-se sempre com a
educação e com o papel social
do cientista, como atestam suas
publicações. Deixou 22 livros,
entre muitos livros-texto e livros com suas reflexões sobre
Ciência, além de uma centena
de artigos sobre educação e política científica.
Outra preocupação constante de Leite, que influenciou
muitos colegas e futuros cientistas, foi a de colocar o país na
vanguarda da pesquisa científica. Neste sentido, em 1949, juntamente com César Lattes e outros, e com o apoio do Ministro
João Alberto Lins de Barros, de
Nelson e de Henry British Lins
de Barros, fundou o Centro
Brasileiro de Pesquisas Físicas.
Tendo sido aposentado compulsoriamente da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
em 1969, por decreto governamental baseado no AI-5, foi
professor visitante na Universidade de Pittsburgh (EUA) durante o ano acadêmico 1969-70.
Demitido mais tarde do CBPF,
ainda durante a ditadura, foi
professor visitante da Universidade de Strasbourg 1, Université Louis Pasteur, de 1970 a 1974
e, no ano em que lá chegou, fundou, com Michel Paty e outros,
os seminários sobre Fundamentos da Ciência, que, mais
tarde, deram origem à revista
"Fundamenta Scientiae".
Até 1981 fez uma carreira brilhante na França e voltou ao
Brasil para o centro que havia
fundado, mas não em definitivo. Somente em 1986, após ser
convidado pelo então Ministro
de Ciência e Tecnologia, Renato Archer, para dirigir o CBPF,
retornou de vez ao Brasil.
Terminado seu mandato,
Leite ocupou-se de dar conferências, pintar e escrever suas
memórias. Mais sobre sua obra
pode ser encontrado na sua Biblioteca Virtual (www4.prossiga.br/Lopes/).
Leite nos deixa também um
dos mais importantes arquivos
sobre a história da ciência no
Brasil; mas deixa, mais do que
tudo, no coração de cada um
que o conheceu, seu exemplo e
saudades de um homem honesto, generoso, crítico, perspicaz, irônico, inquieto e, sobretudo, apaixonado.
Francisco Caruso é pesquisador CBPF e da Uerj
(Universidade Estadual do Rio de Janeiro), e editor do livro "José Leite Lopes: Idéias e Paixões"
(1999)
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