São Paulo, domingo, 13 de julho de 2008

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Eu, cobaia

Imunologista infectou a si próprio com parasita do amarelão para testar terapia contra alergia

ELIZABETH SVOBODA
DO "NEW YORK TIMES"

Em 2004 David Pritchard aplicou a seu braço um emplastro repleto de larvas de ancilóstomos, vermes do tamanho de alfinetes. Ele deixou o emplastro no local por vários dias para garantir que os parasitas inquietos infiltrassem seu organismo. "A coceira que você sente quando eles atravessam sua pele é indescritível", contou. Pritchard, biólogo da Universidade de Nottingham, não é masoquista. Ele se auto-infectou no interesse da ciência. Quando trabalhava em Papua-Nova Guiné nos anos 1980, ele observara que os papuas infectados por Necator americanus, parasita intestinal causador do amarelão, não sofriam muito de sintomas alérgicos como rinite e asma. Ao longo dos anos, Pritchard desenvolveu uma teoria para explicar o fenômeno. "A resposta alérgica evoluiu para ajudar a expelir parasitas, e achamos que os vermes encontraram uma maneira de desligar o sistema imunológico", disse ele. "É por essa razão que as pessoas contaminadas com vermes apresentam menos sintomas alérgicos." Para testar sua teoria e ver se poderá traduzi-la em um recurso terapêutico viável, Pritchard está recrutando participantes que se disponham a ser infectados com dez ancilóstomos cada um, na esperança de dar cabo de suas alergias. Inicialmente, Pritchard, infectou a si mesmo para conseguir a aprovação de autoridades sanitárias nos EUA e no Reino Unido.

Vermífugo de graça
A ancilostomíase causa anemia e mata mais de 60 mil pessoas por ano. Mas Pritchard diz que, usados em número pequeno, em adultos, os vermes não têm causado problemas. Seu interesse pelo aspecto imunológico da infecção por parasitas remete a 1977. Intrigado pelos relatos anedóticos de que parasitas afastavam alergias, fez sua tese de doutorado sobre o assunto. No final dos anos 1980 é que foi investigar Papua-Nova Guiné. "Não falávamos a língua local e estávamos insuficientemente equipados", ele recordou. "Mas criamos uma relação com as pessoas. Nós lhes dávamos vermífugos e, em inglês crioulo, lhes pedíamos educadamente que colhessem sua matéria fecal em baldes para nos dar." O ancilóstomo infiltra o hospedeiro sob a forma de larvas expelidas em excrementos. Peneirando as amostras fecais para extrair os vermes eliminados depois de as pessoas terem tomado vermífugos, a equipe chegou a uma conclusão: os moradores locais que tinham em seu sangue os níveis mais altos de anticorpos relacionados a alergias apresentavam os parasitas menores e menos férteis, indicando que aqueles anticorpos lhes proporcionavam certo grau de proteção contra a ancilostomíase. Mas os ancilóstomos retaliavam. Depois de ter seu trato digestivo colonizado, o hospedeiro com freqüência dava sinais fracos de reação imunológica, levando Pritchard a suspeitar que os vermes estivessem reduzindo as defesas das pessoas. "Passar longas horas sentado na selva nos deixa tempo para pensar", ele observou. "E isso levou à idéia de que cargas de vermes de intensidade tolerável poderiam ser benéficas, sob determinadas circunstâncias."

Vermes na internet
Em 2006, depois de seu experimento de auto-infecção, os Serviços Nacionais de Saúde autorizaram Pritchard a conduzir um estudo com 30 participantes, 15 dos quais receberam dez ancilóstomos cada. Exames mostraram que, após seis semanas, células das 15 pessoas que tinham recebido os vermes começaram a produzir níveis mais baixos de substâncias químicas associadas a respostas inflamatórias, indicando que seus sistemas imunológicos eram mais suprimidos. Voluntários do teste começaram a relatar o desaparecimento de seus sintomas. A notícia se difundiu entre alérgicos, e surgiu no Yahoo! um grupo voltado à "terapia helmíntica". Pritchard está agora recrutando pacientes para um teste maior, mas algumas pessoas que sofrem de alergias não querem esperar. O moderador do grupo do Yahoo, Jasper Lawrence, abriu uma clínica no México para oferecer a terapia experimental (uma "inoculação" básica custa US$ 3.900). "A coisa está ficando um pouco assustadora", disse Pritchard. "É evidente que existe uma multidão de pacientes desesperados que vêem esta idéia como cura para tudo."

Teoria precedente
Embora relatos sobre resistência alérgica proporcionada por parasitas venham sendo feitos há décadas, foi só em 2005 que o biólogo Rick Maizels propôs uma explicação biológica. Quando ele infectou camundongos com o parasita Heligmosomoides polygyrus, descobriu que eles produziam mais células imunológicas T reguladoras. Essas células modulam a resposta imunológica produzindo interleucina-10, um composto que combate os efeitos inflamatórios. A despeito da comprovação teórica, Pritchard é alvo de críticas. "Se uma criança é infectada com 25 ancilóstomos, ela é roubada da dose necessária diária de ferro, e, como os vermes suprimem o sistema imune, podem aumentar a vulnerabilidade do anfitrião a doenças como Aids e malária", disse Peter Hotez, biólogo da Universidade George Washington. Mas Prichard não hesita em aventurar-se onde ninguém já foi. "Eu me infectei com 50 ancilóstomos, e senti os efeitos", relatou. "Senti dores abdominais e tive diarréia. Mas já verificamos que dez ancilóstomos constituem uma dose que não causa sintomas. Os pacientes estão contentes."

Tradução de CLARA ALLAIN



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