São Paulo, segunda-feira, 13 de outubro de 2008

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FRANÇOISE BARRÉ-SINOUSSI

"Decisão de quebrar patente é corajosa"

ANA CAROLINA DANI
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, EM PARIS

Leia a entrevista de Françoise Barré-Sinoussi:

 

FOLHA - A sra. falou que foi ingenuidade achar que teríamos uma vacina contra o HIV logo. Por quê?
FRANÇOISE BARRÉ-SINOUSSI -
Há muitos problemas. Um deles é a grande diversidade do vírus da Aids. Em um mesmo corpo humano contaminado há uma grande variedade de vírus ligeiramente diferentes entre si.
Há também o fato de que esse vírus infecta muito rápido as células que existem no corpo para nos defender da infecção.
O vírus é mais rápido que a resposta imune. Ele penetra na célula e, além de se multiplicar, desregula suas funções.
Pesquisas mais recentes também indicam que, nas células apresentadoras de antígenos [que matam as células infectadas], o vírus da Aids também afeta o que chamamos de imunidade natural, que é a primeira resposta do corpo quando, por exemplo, cortamos um dedo. Tudo isso agrava a situação para descobrir uma vacina. Acreditamos que [usar] uma parte do vírus [em vacinas, como se tenta fazer hoje] possa provocar não uma resposta protetora, mas sim uma resposta deletéria, que vai fazer o inverso do que queremos, com o risco de provocar uma imunodeficiência. Então, há todo um equilíbrio que ainda conhecemos mal entre as respostas benéficas, as respostas destrutivas e os sinais que devemos induzir precocemente para fazer pender esse equilíbrio em direção à resposta protetora.
Enquanto não tivermos compreendido esses mecanismos, teremos muitas dificuldades em desenvolver novas estratégias de vacina.

FOLHA - Luc Montagnier disse que acredita em uma vacina terapêutica em dois ou três anos. A sra. também crê nisso?
BARRÉ-SINOUSSI -
Não vou falar em prazos, nem para a vacina preventiva, nem para a terapêutica. Em compensação, devemos efetivamente buscar uma vacina terapêutica. Essas vacinas vão impedir que os portadores do vírus desenvolvam a doença. E isso já seria um grande progresso.
Hoje, temos em nossas mãos um certo número de sistemas de estudos. Por exemplo, existe essa pequena proporção de doentes, menos de 1%, que são portadores do vírus, mas controlam a carga viral e que, sem nenhum medicamento, não desenvolvem a doença. Parece que esses pacientes têm uma resposta TCD8+ [tipo de célula de defesa do corpo] particular, mas há ainda muito a aprender, porque nem todos esses pacientes têm a mesma resposta.
Além disso, também tentamos identificar por que alguns pacientes têm uma boa resposta TCD8+ e outros não. Começamos a saber que há fatores genéticos e ligados à imunidade natural, que conhecemos ainda mal. Então, ainda é necessário muita pesquisa para compreender por que essas pessoas não desenvolvem a doença.
Há também o modelo do macaco da África, que não desenvolve a doença, apesar de ser portador do vírus. O meu laboratório e outros realizam pesquisas para tentar descobrir a diferença entre o modelo patogênico e os outros que não desenvolvem a doença.

FOLHA - E não podemos fazer previsões sobre o prazo necessário para a descoberta de uma vacina terapêutica ? Será mais rápido que para uma vacina preventiva ?
BARRÉ-SINOUSSI -
Não, na pesquisa científica é muito difícil fixar datas. Durante muitos anos, falamos que uma vacina seria possível em 5 ou 10 anos e faz mais de 20 anos que iniciamos as pesquisas e não conseguimos desenvolver nenhuma vacina. Se você tivesse me perguntado, em dezembro de 1982, quando eu ira descobrir o agente responsável pela Aids, eu diria que não tinha a menor idéia.
Um mês depois conseguimos isolar o vírus.

FOLHA - A sra. disse que o Brasil deu o exemplo no combate à Aids. Mas muitos vêem a distribuição de genéricos como ameaça à propriedade intelectual. Robert Gallo diz que isso desestimula a inovação.
BARRÉ-SINOUSSI -
Eu, pessoalmente, considero um exemplo as decisões que foram tomadas rapidamente no Brasil para o acesso aos medicamentos e para a produção de genéricos. É verdade que os genéricos causam problemas à propriedade intelectual. Mas há também o lado bom. A produção de genéricos, além das negociações e acordos firmados com as farmacêuticas, forçou as empresas a baixarem seus preços a tal ponto que, hoje, certos remédios clássicos são mais baratos do que os genéricos.

FOLHA - O Brasil e a Tailândia agiram certo ao ameaçar e quebrar patentes de antirretrovirais? A sra. é a favor da quebra de patentes?
BARRÉ-SINOUSSI -
Em casos particulares como esses, onde há urgência para a saúde da população, acho que é corajoso tomar esse tipo de decisão.

FOLHA - Alguns estudos têm mostrado que a circuncisão é eficaz para prevenir a doença na África. A sra. recomendaria isso?
BARRÉ-SINOUSSI -
A circuncisão não deve ser utilizada como o único método de prevenção. A própria Organização Mundial da Saúde preconiza diferentes métodos e, entre eles, a circuncisão. Não conheço ninguém que tenha recomendado a circuncisão como único método.
A utilização de preservativos deve ser recomendada, mesmo em pacientes circuncidados.

FOLHA - Então, a sra. é a favor da circuncisão associada a outros métodos de prevenção?
BARRÉ-SINOUSSI -
Sim, porque há resultados científicos hoje que, certamente, serão confirmados em grande escala. Vários estudos indicam que a circuncisão pode levar a uma diminuição do risco de mais de 50%.


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