São Paulo, domingo, 14 de fevereiro de 2010

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Compaixão primata

Estudo na Costa do Marfim diz que adoção de órfãos é prática seguida até por chimpanzés do sexo masculino na natureza

REINALDO JOSÉ LOPES
DA REPORTAGEM LOCAL

Gia ainda não tinha completado três anos quando perdeu a mãe. Porthos decidiu tomar conta dela, embora não tivesse parentesco algum com a família do bebê. Durante um ano e meio, ele carregou Gia nas costas durante longas caminhadas de 8 km e não saiu de perto dela mesmo diante do perigo. Só uma infecção fatal separou os dois, ao matar Porthos.
A foto desta reportagem deixa claro que os protagonistas da história acima não são humanos, mas chimpanzés (Pan troglodytes). Não se trata de um caso isolado, ao menos entre os bandos que habitam a Floresta Nacional Taï, na Costa do Marfim. Estudados há 27 anos pela equipe do suíço Christophe Boesch, do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva, na Alemanha, os bichos adotaram órfãos de sua espécie 18 vezes nesse período, e em apenas cinco desses casos o responsável pela adoção era comprovadamente aparentado ao filhote. Metade dessa amostragem é composta por machos, "pais adotivos".
Os dados, que estão em artigo recente na revista científica de acesso livre "PLoS One", surpreendem por causa da reputação um tanto troglodita dos chimpanzés. Machos da espécie não são famosos pela ternura (como a espécie é promíscua, mesmo pais biológicos dão pouquíssima bola para seus filhos, cuja criação fica quase totalmente a cargo da mãe). E experimentos em cativeiro, nos quais macacos podiam ceder comida a companheiros sem nenhum custo para si próprios, sugeriam que os bichos tendiam a ser indiferentes ao bem-estar dos outros, com pouca capacidade de empatia.

Dilema de prisioneiros
Em entrevista à Folha, Christophe Boesch questionou a validade desse tipo de pesquisa. "As pessoas dão peso exagerado aos estudos com chimpanzés e outras espécies em cativeiro. Animais cativos são pobres prisioneiros, que enfrentam condições de vida totalmente atípicas. Portanto, são de utilidade muito limitada quando queremos entender o que eles realmente são capazes de fazer", afirma ele.
Menos peremptório, Eduardo Ottoni, etologista (especialista em comportamento animal) do Instituto de Psicologia da USP, concorda com que os experimentos destinados a testar a presença de altruísmo entre primatas longe da floresta são "pouco naturalísticos". "Talvez o animal simplesmente não consiga entender a lógica do experimento. Por outro lado, mesmo entre grupos em cativeiro há vários relatos que sugerem altruísmo", como machos em posição de liderança que defendem os mais fracos durante um conflito no grupo.
Os dados levantados por Boesch e companhia, no entanto, parecem levar ao extremo as manifestações de compaixão entre os símios. Filhotes de chimpanzé são extremamente dependentes da mãe, desmamando aos 20 meses de vida, em média; machos só são considerados adultos aos 15 anos (nas fêmeas a maturidade vem alguns anos antes). Viajam com frequência encarapitados nas costas da genitora. Em resumo: dão um trabalho danado.
Por isso mesmo, os exemplos de adoção impressionam. As fêmeas Totem e Nabu, ainda dependentes do leite materno, foram amamentadas respectivamente por mais de quatro anos e dois anos e meio por Tita e Malibu. Fredy dividiu seu ninho e as castanhas que obtinha usando ferramentas de pedra com Victor, de menos de três anos, ao longo de quatro meses. E Porthos manteve Gia firme em suas costas mesmo durante um encontro com um grupo rival, situação perigosíssima para um chimpanzé macho, já que "guerras" entre bandos da espécie são comuns.

União sob fogo
Do ponto de vista estatístico, porém, as adoções não aumentaram as chances de sobrevivência dos órfãos. Boesch aposta que isso se deve à alta mortalidade geral nos grupos de Taï, causada por doenças (como Ebola e carbúnculo, ou antraz), caçadores humanos e predadores como leopardos, especialmente numerosos na floresta.
Isso, aliás, estaria entre as motivações do comportamento: sob pressão, os macacos de Taï cerrariam fileiras, cuidando de forma próxima dos membros mais frágeis do bando. "A alta predação favorece maior solidariedade dentro do grupo", afirma Boesch.
"Em primeiro lugar, seria importante saber a ocorrência de adoções em outros grupos mais "normais", um dado que, pelo visto, a gente não tem", diz Ottoni. Não é possível descartar explicações "egoístas" de longo prazo. No caso dos machos, criar outro macho seria uma forma de ganhar um aliado fiel no futuro, exemplifica ele.
"Por outro lado, os primatas são prisioneiros da sociedade, como diz o [primatologista holandês] Frans de Waal. Se o grupo entrar em colapso, é quase impossível sobreviver. Então, talvez esse comportamento ajude a impedir isso."


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