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Compaixão primata
Estudo na Costa do Marfim diz que adoção de órfãos é prática seguida até por chimpanzés do sexo masculino na natureza
REINALDO JOSÉ LOPES
DA REPORTAGEM LOCAL
Gia ainda não tinha
completado três
anos quando perdeu a mãe. Porthos
decidiu tomar conta dela, embora não tivesse parentesco algum com a família
do bebê. Durante um ano e
meio, ele carregou Gia nas costas durante longas caminhadas
de 8 km e não saiu de perto dela
mesmo diante do perigo. Só
uma infecção fatal separou os
dois, ao matar Porthos.
A foto desta reportagem deixa claro que os protagonistas
da história acima não são humanos, mas chimpanzés (Pan
troglodytes). Não se trata de um
caso isolado, ao menos entre os
bandos que habitam a Floresta
Nacional Taï, na Costa do Marfim. Estudados há 27 anos pela
equipe do suíço Christophe
Boesch, do Instituto Max
Planck de Antropologia Evolutiva, na Alemanha, os bichos
adotaram órfãos de sua espécie
18 vezes nesse período, e em
apenas cinco desses casos o responsável pela adoção era comprovadamente aparentado ao
filhote. Metade dessa amostragem é composta por machos,
"pais adotivos".
Os dados, que estão em artigo
recente na revista científica de
acesso livre "PLoS One", surpreendem por causa da reputação um tanto troglodita dos
chimpanzés. Machos da espécie não são famosos pela ternura (como a espécie é promíscua,
mesmo pais biológicos dão
pouquíssima bola para seus filhos, cuja criação fica quase totalmente a cargo da mãe). E experimentos em cativeiro, nos
quais macacos podiam ceder
comida a companheiros sem
nenhum custo para si próprios,
sugeriam que os bichos tendiam a ser indiferentes ao bem-estar dos outros, com pouca capacidade de empatia.
Dilema de prisioneiros
Em entrevista à Folha,
Christophe Boesch questionou
a validade desse tipo de pesquisa. "As pessoas dão peso exagerado aos estudos com chimpanzés e outras espécies em cativeiro. Animais cativos são pobres prisioneiros, que enfrentam condições de vida totalmente atípicas. Portanto, são
de utilidade muito limitada
quando queremos entender o
que eles realmente são capazes
de fazer", afirma ele.
Menos peremptório, Eduardo Ottoni, etologista (especialista em comportamento animal) do Instituto de Psicologia
da USP, concorda com que os
experimentos destinados a testar a presença de altruísmo entre primatas longe da floresta
são "pouco naturalísticos".
"Talvez o animal simplesmente não consiga entender a lógica do experimento. Por outro
lado, mesmo entre grupos em
cativeiro há vários relatos que
sugerem altruísmo", como machos em posição de liderança
que defendem os mais fracos
durante um conflito no grupo.
Os dados levantados por
Boesch e companhia, no entanto, parecem levar ao extremo
as manifestações de compaixão
entre os símios. Filhotes de
chimpanzé são extremamente
dependentes da mãe, desmamando aos 20 meses de vida,
em média; machos só são considerados adultos aos 15 anos
(nas fêmeas a maturidade vem
alguns anos antes). Viajam com
frequência encarapitados nas
costas da genitora. Em resumo:
dão um trabalho danado.
Por isso mesmo, os exemplos
de adoção impressionam. As
fêmeas Totem e Nabu, ainda
dependentes do leite materno,
foram amamentadas respectivamente por mais de quatro
anos e dois anos e meio por Tita e Malibu. Fredy dividiu seu
ninho e as castanhas que obtinha usando ferramentas de pedra com Victor, de menos de
três anos, ao longo de quatro
meses. E Porthos manteve Gia
firme em suas costas mesmo
durante um encontro com um
grupo rival, situação perigosíssima para um chimpanzé macho, já que "guerras" entre bandos da espécie são comuns.
União sob fogo
Do ponto de vista estatístico,
porém, as adoções não aumentaram as chances de sobrevivência dos órfãos. Boesch aposta que isso se deve à alta mortalidade geral nos grupos de Taï,
causada por doenças (como
Ebola e carbúnculo, ou antraz),
caçadores humanos e predadores como leopardos, especialmente numerosos na floresta.
Isso, aliás, estaria entre as
motivações do comportamento: sob pressão, os macacos de
Taï cerrariam fileiras, cuidando
de forma próxima dos membros mais frágeis do bando. "A
alta predação favorece maior
solidariedade dentro do grupo", afirma Boesch.
"Em primeiro lugar, seria importante saber a ocorrência de
adoções em outros grupos mais
"normais", um dado que, pelo
visto, a gente não tem", diz Ottoni. Não é possível descartar
explicações "egoístas" de longo
prazo. No caso dos machos,
criar outro macho seria uma
forma de ganhar um aliado fiel
no futuro, exemplifica ele.
"Por outro lado, os primatas
são prisioneiros da sociedade,
como diz o [primatologista holandês] Frans de Waal. Se o
grupo entrar em colapso, é quase impossível sobreviver. Então, talvez esse comportamento ajude a impedir isso."
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