São Paulo, domingo, 14 de fevereiro de 2010

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+MARCELO LEITE

A hora e a vez do IPCC



Rajendra Pachauri, presidente do painel da ONU, deveria renunciar


O auge do IPCC passou. Em fevereiro de 2007, o órgão criado duas décadas antes pelo programa ambiental da ONU e pela Organização Meteorológica Mundial lançou o sumário executivo de seu aguardado "Quarto Relatório de Avaliação" (AR4). Em outubro do mesmo ano, recebeu o Nobel da Paz, dividido com o televangelista do clima Al Gore.
Três anos depois, o IPCC está na lama. Uma sucessão de erros e revelações pôs em questão as práticas de estrelas salientes na constelação com centenas de cientistas-colaboradores. Sua reputação caminha para a sarjeta, e a do IPCC ameaça ir junto.
Não que o IPCC não enfrentasse oposição e críticas desde o início. Trata-se de um experimento corajoso e até certo ponto ingênuo: obter da ciência conclusões sólidas para governos atuarem, na esfera da ONU, com o objetivo de prevenir e combater uma eventual mudança do clima -assunto sabidamente eivado de incertezas.
O nome escolhido deixa bem claro o propósito de aproximar ciência e política: Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima. Os próprios governos participam do IPCC. Como em qualquer documento multilateral da ONU, eles têm voto e veto também sobre seus relatórios científicos.
Nessa moldura, até 2007, era mais comum ouvir críticas ao IPCC por seu caráter conservador. Sobre o AR4, por exemplo, objetava-se nos meios científicos que a previsão de elevação dos mares em pouco mais de meio metro até o ano 2100 era tímida demais. Afinal, estudos já publicados na época calculavam que poderia atingir 1,5 m.
Sob pressão, o grupo de trabalho do IPCC encarregado de sumarizar a ciência do clima para governantes terminou fazendo uma concessão à retórica. Chamou o aquecimento global de "inequívoco" na apresentação do AR4 em Paris. Antes, ele só era considerado "provável", assim como a contribuição humana para ele.
De lá para cá, vieram a crise financeira de 2008 e a recessão. O transatlântico com duas centenas de nações a bordo, em rota acidentada para um tratado sucessor do Protocolo de Kyoto, naufragou em Copenhague. De permeio, surgiu o escândalo das mensagens eletrônicas furtadas e vazadas na internet. Elas mostram que, em alguns casos, pesquisadores envolvidos com os relatórios do IPCC lutavam para excluir vozes discordantes da literatura científica consagrada.
A prática não é incomum em campo nenhum da ciência, mas cai particularmente mal para um grupo que acusava adversários de não conseguir fazer seus dados e interpretações superarem a barreira da "peer review" (a revisão por pares que supostamente garante a qualidade dos estudos publicados). Para piorar, algumas mensagens revelaram o propósito de resistir a pedidos formais de acesso a dados.
Naquela altura ainda se alegava que eram casos isolados e que não alteravam as publicações do IPCC. Mas aí vieram à tona imprecisões e erros quer terminaram incorporados no AR4, como a previsão de que as geleiras do Himalaia poderiam extinguir-se até 2035, o percentual de floresta amazônica suscetível a "savanizar-se", a parcela do território holandês abaixo do nível do mar...
Rajendra Pachauri, presidente do IPCC, saiu-se mal na administração da crise. Deveria renunciar. O próprio IPCC, para restaurar a credibilidade da ciência sobre o clima, poderia ser substituído por um órgão independente de governos, com apoio talvez das academias nacionais de ciência.
O assunto é sério e complexo demais para ficar nas mãos de cientistas preocupados hoje com a própria sobrevivência.


MARCELO LEITE é autor de "Darwin" (série Folha Explica, Publifolha, 2009) e "Ciência - Use com Cuidado" (Editora da Unicamp, 2008).
Blog: Ciência em Dia ( cienciaemdia.folha.blog.uol.com.br).
E-mail: cienciaemdia.folha@uol.com.br



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