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Poder celestial
Físico italiano propõe que o conhecimento astronômico de povos antigos ajudava a criar "ambientes sagrados'
REINALDO JOSÉ LOPES
DA REPORTAGEM LOCAL
Nada mais natural
que o sujeito que
visita o Equador
(país) queira aproveitar para conhecer o Equador (linha imaginária). Os equatorianos aproveitaram esse desejo compreensível para construir o vilarejo turístico de Mitad del Mundo, a
13 km de Quito. Que os gringos
não ouçam, mas a verdadeira
"metade do mundo" fica algumas centenas de metros ao
norte de Mitad del Mundo. Os
restos de um monumento pré-colombiano, provavelmente
anterior aos incas e de origem
incerta, marcam o local exato
cruzado pela linha do Equador.
Anedotas irônicas desse naipe pontuam o livro "Mysteries
and Discoveries of Archaeoastronomy" ("Mistérios e Descobertas da Arqueoastronomia"),
do físico italiano Giulio Magli,
professor da Universidade Politécnica de Milão. Um dos
principais objetivos de Magli é
chacoalhar os preconceitos do
leitor e impedir que ele continue a imaginar civilizações antigas como primitivas e pouco
sofisticadas, em especial no
que se refere ao conhecimento
astronômico. Para o pesquisador, nenhum povo do passado
merece a alcunha de bárbaro.
Por outro lado, ele é sensato
o suficiente para não cometer o
erro oposto. Que ninguém espere relatos sobre contatos
imediatos do terceiro grau ou
tecnologias alienígenas dando
uma mãozinha na construção
das pirâmides egípcias e maias.
Num passeio por quase todas
as culturas antigas que deixaram restos monumentais de
sua existência -dos menires
(grandes postes de pedra) da
Bretanha francesa que inspiraram o bonachão Obelix aos desenhos gigantescos de Nazca,
no Peru-, Magli mostra como
dados astronômicos relativamente precisos foram obtidos e
armazenados ao longo de séculos. Às vezes, sem a ajuda de nenhum registro escrito e quase
sempre a olho nu ou, no máximo, com o auxílio de poucos
instrumentos rudimentares.
Palmeira
Um deles é o egípcio "merkhet", um simples talo de palmeira com uma abertura na
ponta, que ajudava o protoastrônomo faraônico (quase sempre um sacerdote) a enquadrar
as estrelas que estava observando. Os maias, outro povo famoso pela obsessão com o domínio celeste, tinham um instrumento parecido.
Para Magli, boa parte dos
grandes monumentos do passado usou esse conhecimento
astronômico, em especial o associado com os ciclos anuais ou
plurianuais do Sol, da Lua e das
principais estrelas, para produzir o que ele chama de "sacred
landscapes" (algo como "ambientes sagrados") ou "powerscapes" ("ambientes de poder",
trocadilho com "landscape").
Segundo ele, é preciso imaginar os grandes monumentos
regidos por alinhamentos astronômicos -as pirâmides de
Gizé, no Egito, o círculo de pedra de Stonehenge, no Reino
Unido, o "observatório" de El
Caracol, na cidade maia de Chichén Itzá, entre outros-, como
forma de reproduzir na Terra
os eventos celestes. Para os povos que os criaram (em especial
as elites que bancavam as construções), também uma forma
de canalizar o poder do firmamento em momentos-chave.
Ainda que faraós ou reis
maias não acreditassem realmente na comunhão entre soberano e poderes cósmicos, o
resultado visual tinha, no mínimo, uma teatralidade impactante, resultando no que Magli
chama de hierofania, ou seja,
uma manifestação do sagrado.
Um dos exemplos mais interessantes envolve o templo
principal de Abu Simbel, construído a mando do faraó Ramsés 2º (1279 a.C.-1213 a.C.).
O templo está voltado para o
leste. Encarapitados no alto de
sua fachada, babuínos esculpidos se voltam para a aurora,
com as patas da frente erguidas
em sinal de adoração. Todos os
anos, em apenas dois dias do
ano -22 de fevereiro e 22 de
outubro, datas cujo significado
simbólico escapa aos estudiosos de hoje-, os raios do Sol
nascente atravessam com precisão os corredores que conduzem à capela principal do templo e iluminam, nesta ordem, as
estátuas de Amon-Rá, do faraó
e de Rá-Horakhti. O design tem
o cuidado de evitar que a luz
atinja a estátua de Ptah, a única
divindade não-solar do quarteto (já que o soberano egípcio
também era considerado um
deus solar encarnado).
Há uma série de outros designs engenhosos como esses
espalhados mundo afora, com
destaque especial para técnicas
que "canalizam" os raios solares em eventos como os solstícios de verão e inverno.
O livro peca apenas quando
Magli avança um pouco o sinal
com a própria tese, dizendo-se
confiante de que as estátuas da
ilha de Páscoa ou as linhas de
Nazca também correspondem
a alinhamentos astronômicos,
quando há poucos dados sólidos sobre esses casos. É normal: olhar estrelas deixa qualquer um empolgado.
LIVRO - "Mysteries and Discoveries of Archaeoastronomy"
de Giulio Magli
Springer, 444 págs., US$ 27,50
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