São Paulo, domingo, 14 de março de 2010

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+Marcelo Leite

Gawande e os M&M's do Van Halen


Médico faz defesa apaixonada e metódica das listas de procedimentos


David Lee Roth, vocalista da banda de rock Van Halen, exige dos promotores de concertos que disponham uma tigela de M&M's no fundo do palco. Detalhe: todos os confeitos da cor marrom devem ser retirados da vasilha. O contrato diz que basta um marronzinho para cancelar o show, com prejuízo total para o organizador.
Ninguém espera encontrar informações como essa num livro sobre medicina. No caso de Atul Gawande, um de meus autores preferidos, detalhes são parte essencial de seu estilo e eficácia. Quem duvidar que leia a tocante reportagem sobre a contribuição da coceira para a neurociência na última edição da revista "Piauí".
O caso dos M&M's está no livro "The Checklist Manifesto - How to Get Things Right" ("O Manifesto da Lista de Verificação - Como Fazer as Coisas Direito", em tradução pobre; 211 págs., US$ 24,50). É o terceiro do médico e jornalista da revista "The New Yorker". Antes saíram "Complicações" (há tradução brasileira) e "Better", ambos imperdíveis.
Gawande é um cirurgião geral meticuloso e obcecado com eficiência. Qualidades desejáveis numa profissão em que detalhes como ministrar um antibiótico não mais que uma hora antes da operação podem salvar pacientes da morte. Ele, contudo, parece estar muito acima da média mundial, pelo que se pode ouvir de residentes brasileiros sobre o funcionamento de nossos hospitais.
Como escritor, Gawande eleva essas qualidades à categoria superior, ética e estética, das interrogações literárias sobre os desvãos da medicina. Algo como o que faz Oliver Sacks com os meandros da mente e do cérebro.
Uma tradição que conta com escritores da estatura de um Sigmund Freud, hoje pouco lido e muito vilipendiado. Em "Checklist", como entrega o título, o médico americano faz uma defesa apaixonada e metódica das listas de verificação de procedimentos. Narra sua luta para introduzi-las nos centros cirúrgicos, empreitada que ganhou ímpeto e alcance quando foi convidado pela Organização Mundial da Saúde, no final de 2006, para participar de um programa de redução de mortes evitáveis em cirurgias.
Para contar essa história -com final feliz-, Gawande passa antes pelas listas minuciosas da aviação, da construção civil e até do restaurante Rialto, em Boston (em realidade, receitas).
O leitor fica sabendo, deliciado, que o pouso impecável do vôo 1549 da US Airways no rio Hudson, em 14 de janeiro de 2009, não resultou tanto do heroísmo do comandante Chesley Sullenberger III, mas da realização estrita dos procedimentos nas listas do Airbus-320 para vôo sem motores e pouso na água.
As listas da aviação funcionam porque são o supra-sumo da brevidade e da objetividade. As três que Gawande ajudou a compilar para a OMS distribuir em centros cirúrgicos do mundo todo somam apenas 19 itens. Um teste-piloto em oito hospitais espalhados pelo globo revelou que a taxa de complicações pós-operatórias sérias caiu 36% com os procedimentos, e a de mortes, 47%.
E o que os M&M's de Van Halen têm a ver com isso tudo? Gawande explica que a aparente excentricidade de David Lee Roth não passa de um estratagema.
Seu propósito é forçar os produtores dos megashows da banda a usar listas de verificação. Ou, pelo menos, a serem muito meticulosos na lida com as nove carretas de equipamento, para garantir que todos os amplificadores e luzes entrem em ação na hora certa no palco -como os antibióticos no centro cirúrgico.

MARCELO LEITE é autor de "Darwin" (série Folha Explica, Publifolha, 2009) e "Ciência - Use com Cuidado" (Editora da Unicamp, 2008).
Blog: Ciência em Dia ( cienciaemdia.folha.blog.uol.com.br )
E-mail: cienciaemdia.folha@uol.com.br



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