São Paulo, domingo, 15 de fevereiro de 2009

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

E-fumo


O cigarro eletrônico virou febre antes de ter seus benefícios testados, o que só começa a acontecer agora -e os resultados parecem positivos

HELEN THOMSON
DA "NEW SCIENTIST"

Eu nunca fui fumante, então, sentada no balcão do bar, com a mão no queixo, tento lembrar como Audrey Hepburn fazia. Trago gentilmente e expiro. Uma névoa branca envolve meu rosto enquanto espero o barato da nicotina chegar ao meu cérebro. As pessoas começam a olhar. Então o inevitável acontece: "Ei, aqui não pode fumar". Só que neste caso eu posso, porque não estou fumando.
Eu acabo de "acender" um e-cigarro. Parece um cigarro de verdade e, com cada tragada, alguns microgramas de nicotina de um cartucho descartável deveriam chegar ao meu pulmão. Meu e-cigarro até produz "fumaça" -mas não queima, então, não é proibido. No número crescente de locais públicos onde o fumo é banido, uma nova raça de fumante surgiu, tragando essas bugigangas.
Os e-cigarros podem ajudar os fumantes a escapar à proibição, mas também ajudam-nos a fugir das consequências do tabagismo ou a largar o vício? Em setembro do ano passado, a Organização Mundial da Saúde divulgou um comunicado afirmando que não havia evidência alguma de que eles pudessem ajudar a largar o vício. Então, o que nós sabemos sobre eles?
Os e-cigarros foram inventados por Hon Lik, da empresa de aparelhos eletrônicos Ruyan, na China. O primeiro foi vendido em 2004. A Ruyan diz ter vendido mais de 300 mil unidades em 2008.
O aparelho parece um cigarro normal, mas, em vez de conter tabaco, tem uma pilha e um LED. O filtro descartável contém um cartucho com nicotina dissolvida em propilenoglicol, o líquido das máquinas de fumaça de danceterias. Quando você traga, um sensor de pressão liga uma resistência que vaporiza o propilenoglicol e solta a "fumaça". O cartucho mais forte contém a mesma quantidade de nicotina de um cigarro normal, mas dura 300 tragadas, contra 15 de um cigarro.
No entanto, em cada tragada, o cartucho mais forte libera apenas um terço da nicotina de uma tragada num cigarro normal, diz Murray Laugesen, que estuda os e-cigarros.

Buraco legal
Até aqui tudo bem. Mas será que os e-cigarros são realmente menos perigosos? Você pode pensar que alguma organização independente já tenha tentado verificar. Longe disso. Na maioria dos países o e-cigarro escapa à regulamentação. "Se você diz que um produto tem efeito sobre a saúde, ele se torna um remédio e passa por regulamentação", diz John Britton, pneumologista da Universidade de Nottingham (Reino Unido). "Se é um produto da combustão de tabaco, esse produto é um cigarro". O e-cigarro não é nem um nem outro, o que dá aos fabricantes liberdade total.
Para complicar ainda mais as coisas, algumas empresas que dizem que os e-cigarros ajudam a cortar o vício citam uma aprovação falsa da OMS.
Laugesen é um dos poucos pesquisadores que lidam com a questão. No começo de 2007, ele começou um programa de pesquisas para investigar os riscos potenciais do cigarro eletrônico. A pesquisa é bancada pela Ruyan, mas Laugesen insiste em que ela é independente, visão partilhada pela OMS.
Os resultados preliminares parecem positivos. Ele descobriu que cada tragada libera só alguns microgramas de água, álcool, nicotina, propilenoglicol e flavorizantes. Mas e quanto ao risco de substâncias cancerígenas? Apesar de traços delas terem sido encontrados no e-cigarro -mais provavelmente pegando carona na nicotina derivada de tabaco dos cartuchos-, Laugesen diz que sua concentração não é diferente da dos adesivos de nicotina.
O que preocupava o pessoal do bar era o fumo passivo. Embora o cigarro eletrônico não produza monóxido de carbono ou os carcinógenos da combustão, o cartucho contém aldeído acético -o causador da ressaca, que pode ser cancerígeno se se acumular no corpo. No e-cigarro, no entanto, os níveis são baixos e podem ser facilmente quebrados pelo organismo.
Nem todo mundo se convence de que o cigarro eletrônico ajuda mesmo a parar de fumar. "Sem exames de sangue, é difícil confirmar se a nicotina está chegando à corrente sanguínea", diz David Burns, que pesquisa doenças relacionadas ao tabaco na Universidade da Califórnia em San Diego, EUA. Se não chega, não ajuda. Laugesen está estudando esse assunto e submeteu seus resultados ao encontro anual da Sociedade para Pesquisa da Nicotina, que acontece em abril na Irlanda.
E quanto aos elementos psicológicos do vício? Será que um fumante comum aceitaria um e-cigarro no lugar do de verdade? Eu decidi descobrir com um experimento não-científico: dei um para meu pai, que fuma um maço por dia. Ele não gostou. Mas, justiça seja feita, meu pai não pensa em parar.
Marco Munafo, da Universidade de Bristol, Reino Unido, suspeita que uma parte do problema resida em outras substâncias dos cigarros reais. Apesar de a nicotina ser o componente viciante primário, há outros componentes na fumaça que alavancam seu potencial.
Estudos com animais sugerem que substâncias na fumaça que não são a nicotina inibam 40% da atividade da enzima monoaminaoxidase (MAO). A nicotina causa a liberação do neurotransmissor dopamina, cuja ação está ligada a sensações prazerosas do fumo. Já foi sugerido que a inibição da MAO poderia diminuir a recaptação de dopamina, potencializando o efeito do fumo.
O TobReg (Grupo de Estudos da OMS para Regulamentação do Tabaco) realizou uma reunião em novembro de 2008 para debater o destino dos e-cigarros. A conclusões serão publicadas só em setembro, mas há sinal de que um parecer vai incluir propostas de regulação mais rígidas: por exemplo, a venda do e-cigarro seria restrita a farmácias. O tabagismo eletrônico em lugares fechados também seria vetado até haver evidências de que ele não prejudique fumantes passivos.


Texto Anterior: + Marcelo Gleiser: Rejeição cósmica
Próximo Texto: + Marcelo Leite: Analfabetos em números
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.