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Marcelo Gleiser
Sobre a Verdade
Além de toda a
subjetividade humana,
o que é
real ou não?
O
que é a verdade? O dicionário
(Aurélio) nos diz que verdade
é "conformidade com o real".
Complicado isso, já que determinar o
que é ou não "real" não é trivial. O que
é real para uns, por exemplo, anjos, fadas e duendes, pode não ser para outros. Segundo essa definição, para determinaram o que é verdadeiro temos
que conhecer bem a realidade.
E como fazer isso? Como distinguir,
além da subjetividade humana, o que
é real ou não? Esse é o problema, separar fato de opinião, o que é real "de
verdade" do que é apenas fruto de
uma visão pessoal ou de crenças de
um grupo de pessoas.
Se tudo o que fazemos está ligado de
um modo ou outro a quem somos, como, então, definir o que é verdade?
Uma possibilidade é estabelecer categorias de verdade. No topo, ficam as
verdades absolutas, que transcendem
o elemento humano.
Elas independem de opinião, de afiliação partidária, de religião, de contexto histórico ou de geografia. São as
verdades matemáticas, as que podem
ser afirmadas categoricamente, como
por exemplo: 2+2=4. Essa afirmação,
uma vez compreendidos os símbolos,
é tida como verdadeira.
Ela é verdadeira para nós, para os
monges de um monastério no Tibet,
para sacerdotes egípcios que viveram
há quatro mil anos, ou para supostas
inteligências alienígenas que existam
pelo cosmo afora. Como esta, existem
muitas outras, baseadas em asserções
matemáticas que dependem da percepção de objetos no mundo.
Se vemos uma pedra podemos associar uma unidade a ela ("uma" pedra).
Se vemos uma podemos ver mais de
uma e, com isso, construir uma aritmética. São muito úteis essas verdades matemáticas, mas menos interessantes. Não que a matemática pura seja pouco interessante, pelo contrário.
Existem complicações mesmo nela,
inclusive ao nível mais elementar, algo que podemos tratar num outro domingo. Mas por serem verdades absolutas e, portanto, longe da confusa
realidade humana, não dão muito espaço para a polêmica.
A coisa fica complicada quando se
discute, por exemplo, a realidade física. O Universo, ou melhor, nossa concepção dele, mudou muito nos últimos 500 anos. Para uma pessoa da Renascença, antes de Nicolau Copérnico
(1473-1543), o cosmo era finito, com a
Terra imóvel no centro. O céu, a morada de Deus, ficava além da esfera das
estrelas fixas. Era ela que marcava o
fim do espaço.
Após Copérnico e, principalmente,
após Johannes Kepler (1571-1630) e
Galileu Galilei (1564-1642) nas primeiras décadas do século 17, o Sol passou a ser o centro do cosmo e a Terra
um mero planeta. O que era "verdade"
para alguém de 1520 não era para alguém de 1650.
E o universo em que vivemos hoje,
gigantesco, com centenas de bilhões
de galáxias se afastando uma das outras, é completamente diferente do de
uma pessoa de 1650. Qual dessas várias cosmologias é verdadeira?
Todas e nenhuma delas. Se definimos como verdade o que construímos
com o conhecimento científico que
detemos num determinado momento, todas essas versões são verdadeiras. Mas nenhuma delas é a verdade.
Dado que jamais poderemos medir
com absoluta precisão todas as facetas
do cosmo e da Natureza, é essencialmente impossível obter uma versão
absoluta do que seja a realidade física.
Consequentemente, a ciência jamais
poderá encontrar a verdade.
O que podemos fazer - e o fazemos
maravilhosamente bem - é usar nossa razão e nossos instrumentos para
nos aproximar cada vez mais dessa
verdade intangível. É essa limitação
que enobrece a ciência, dando-lhe sua
dimensão humana.
MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA) e autor do livro "A Harmonia do Mundo"
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