São Paulo, domingo, 15 de abril de 2007

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Os genes da vovó

Jornalista conta em livro como a genética e a antropologia se juntam para tentar elucidar o mistério da origem humana

"Nature"
Crânio do Sahelanthropus tchadensis, fóssil africano considerado o hominídeo mais antigo


MARCELO NÓBREGA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Quem duvida que a narrativa de onde e como surgiu a espécie humana ainda seja objeto de fascínio deveria visitar a mais nova exposição permanente do Museu Americano de História Natural, em Nova York. Uma ala inteira do museu foi disponibilizada para o "Salão das Origens Humanas". Ali, esqueletos de hominídeos extintos são apreciados por uma multidão de visitantes, incluindo senhoras benfeitoras do museu, cãezinhos a tiracolo (exatamente quanta pecúnia precisa ser doada a um museu antes que Totó seja bem-vindo em uma exposição que consiste num amontoado de ossos raros e preciosos?). A persistente popularidade do tema deve-se em parte ao acúmulo, ao longo dos anos, de fósseis por paleoantropólogos e artefatos por arqueólogos. Mas uma nova e crescente parceria dessas disciplinas com uma gama de outras que incluem primatologia, lingüística, antropologia social e psicologia evolutiva gerou uma nova síntese sobre a compreensão do processo de transformação morfológica e cognitiva que, em um período de 5 milhões de anos, levou um bicho parecido com um chimpanzé a ler jornal. "Before the Dawn" (Antes do Alvorecer, em inglês) é mais um dos livros a traçar os eventos cruciais desta saga, sob este novo prisma multidisciplinar. Assinado por Nicholas Wade, jornalista científico do "New York Times", é talvez a mais abrangente, certamente a mais absorvente -mas dificilmente a mais rigorosa- narrativa sobre as origens humanas. Segundo Wade, ossos e artefatos revelam vislumbres do longo processo evolutivo humano mas, dada a escassez do registro fóssil, este é incapaz de contar os detalhes dessa história. A genética veio ao socorro nestes últimos anos, iluminando um pouco um passado que parecia irremediavelmente perdido. Wade mostra como análises genéticas podem estimar coisas tão díspares quanto o tamanho da população de primatas da qual evoluímos até quando passamos a usar roupas (por meio do estudo de variações genéticas em piolhos). Wade detalha passo a passo o que levou um grupo de primatas a descer das árvores, andar sobre duas pernas, aumentar o cérebro, desenvolver ferramentas, conviver socialmente e, por fim, usar a linguagem. Há cerca de 50 mil anos, um único grupo de talvez não mais que 150 humanos saiu da Etiópia, cruzou o mar Vermelho e conquistou o mundo. Ingrid Bergman e Mário Juruna, René Descartes e George W. Bush descendem dessas 150 pessoas. Mas, ao voltarmos no tempo, vemos que não há quase nenhum registro material dessa diáspora. Como então essa história está sendo recontada? A resposta está em mim, em você e nos 6 bilhões de pessoas que tiveram um ancestral comum. O nosso genoma guarda marcas desse passado. Comparando as diferenças genéticas entre indivíduos de várias populações, é possível saber onde e quando estas surgiram. É possível, inclusive, estimar se as variações que apareceram ao longo do tempo trouxeram algum benefício para seus portadores. Para Wade, os genes são os narradores mais fiéis da diáspora humana e, em última análise, os verdadeiros protagonistas em "Before the Dawn". E é aí que se encontra a falha central do livro. Wade freqüentemente entra no perigoso terreno de confundir correlações estatísticas com causalidade mecanística. Se é fácil inferir que uma mutação no genoma trouxe benefícios para quem a possui, é quase sempre impossível saber por que essa mutação é benéfica. Há uma febre de descrições recentes de mutações que, segundo os geneticistas que as descobrem e a imprensa que alegremente as dissemina, "parecem" ou "podem" estar relacionadas com o tamanho do cérebro, grau de inteligência, linguagem etc. Todas padecem do mesmo mal: não há qualquer evidência empírica de que elas tenham sido selecionadas por afetar estes fatores -e não uma miríade de outros. Wade parece acreditar, de forma simplista e determinista, na genética e na seleção natural como agentes causadores únicos de diferenças morfológicas, fisiológicas e comportamentais ao longo da evolução humana -e, mais perigosamente, entre grupos humanos modernos. Ler "Before the Dawn" requer senso crítico aguçado para não cair nas arapucas lógicas irresistíveis que um jornalista gabaritado como Wade sabe armar como ninguém. Mas é também uma oportunidade de apreciar como a interseção de múltiplos campos de conhecimento tem permitido abordar algumas das perguntas mais intrigantes que povoam nossa imaginação. Os compiladores do Gênesis, segundo Wade, esforçaram-se para engendrar uma história coerente sobre a origem humana. Usando metáforas e lendas contemporâneas, responderam a questões como por que humanos falam muitas línguas, sofrem de dores do parto e escondem sua nudez. A origem humana pode agora ser explicada de outra forma.
MARCELO NÓBREGA é professor de Genética Humana da Universidade de Chicago
LIVRO - "Before the Dawn" Nicholas Wade; Penguin, 320 págs.




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