São Paulo, segunda-feira, 15 de julho de 2002

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ENTREVISTA

Segundo o farmacólogo Sérgio Ferreira, falta projeto eficiente de integração entre universidades e indústrias

Cientista critica política de presidenciáveis

Wides Barbosa/Diário da Manhã
O farmacólogo Sérgio Ferreira dá palestra em reunião da SBPC


ANTÔNIO GOIS
RICARDO BONALUME NETO
ENVIADOS ESPECIAIS A GOIÂNIA

Os candidatos à Presidência da República ainda não conseguiram apresentar uma proposta clara e eficiente para resolver um problema fundamental da ciência brasileira: integrar a indústria e a universidade para desenvolver, de forma mais eficiente, a pesquisa tecnológica. A opinião é de Sérgio Henrique Ferreira, um dos mais celebrados cientistas do país.
O farmacólogo Ferreira, 67, professor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da USP, foi eleito recentemente para a prestigiosa Academia Nacional de Ciências dos EUA, sendo o quarto brasileiro a fazer parte dela, graças a seus trabalhos na pesquisa da dor e da hipertensão.
Ex-presidente da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência), ele concedeu entrevista à Folha durante a 54ª Reunião Anual da entidade, realizada na semana passada, em Goiânia.
Apesar de reconhecer que os projetos genoma no país, especialmente em São Paulo, tiveram méritos, Ferreira critica essa atividade: "Fazer genoma não é ciência, é meia ciência". Leia, a seguir, trechos da entrevista.

Folha - O senhor já avaliou as propostas dos candidatos à Presidência para a área de Ciência e Tecnologia? O que achou delas?
Sérgio Henrique Ferreira -
Já ouvimos os candidatos falando e já deu para perceber que não encontramos nenhuma novidade nas suas propostas. Todos dizem que ciência é importante e que é necessário promover a associação entre universidade e indústria. Mas nenhum deles fez essa proposta de forma clara, dizendo que o desenvolvimento é de responsabilidade industrial e do governo, que deve estimular por meio de seus órgãos de fomento e dos ministérios o desenvolvimento tecnológico. Não basta forçar a união da universidade com a indústria de e achar que isso vai resolver.
Não adianta, por exemplo, a Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) investir para que uma universidade execute o desenvolvimento de um produto para uma indústria. Isso é uma deseducação do sistema. Não se pode pôr um estudante que vai fazer uma pós-graduação para desenvolver uma patente da qual ele não será proprietário.

Folha - Mas há casos de universidades que esbarram, até sem querer, em um composto que é interessante e querem patenteá-lo.
Ferreira -
Isso ocorre frequentemente. Muitas idéias estão na universidade, mas não é ela que faz o desenvolvimento. A universidade chega a um protótipo. Ela chega a uma idéia de como se faz o raio laser ou um novo analgésico. Essa é a visão do desenvolvimento científico universitário. Pegar esse possível medicamento e fazer com que ele chegue ao mercado é função de um sistema que saiba indicar o desenvolvimento tecnológico. É o que a indústria tem.

Folha - Resolver a questão da integração harmônica entre a universidade e a indústria é mesmo um problema simples?
Ferreira -
É um problema simples, mas de decisão estratégica. Não basta dizer que o Ministério da Ciência e Tecnologia fará esse desenvolvimento. É preciso envolver outros órgãos de governo. O Ministério da Saúde deve pensar em desenvolvimento de fármacos a partir de plantas. Uma fração pequeníssima de investimento desse ministério seria uma verba maior do que a do CNPq.

Folha - O governo atual não tentou ampliar essa associação por meio dos fundos setoriais de investimento em pesquisa?
Ferreira -
Esse governo imaginou os fundos setoriais como sendo o processo que reorganizaria o investimento em ciência. Mas o maior problema que nós temos de compreender é o que se quer com a associação entre universidade e empresa. O que caracteriza uma indústria inovadora é ter laboratórios. Isso não acontece como política de desenvolvimento tecnológico no Brasil. Pode ocorrer somente na Petrobras, na Embraer e na Vale do Rio Doce, que são instituições que já cresceram dentro de um prisma de visão nacionalista, refletindo idéias nacionalistas do governo militar.

Folha - Não é curioso que hoje a SBPC, que sempre combateu o regime militar, veja hoje aspectos positivos dessa época?
Ferreira -
As coisas sempre têm seu ponto negativo e positivo. O interessante no caso do regime militar é a gente analisar porque eles caíram na América Latina. Na minha opinião, foi porque os Estados Unidos perceberam que os militares latino-americanos eram nacionalistas. O mercado jamais seria aberto com um governo nacionalista. Os militares, mesmo estando errados em alguns casos na proteção ao mercado, não iam abrir facilmente a economia.

Folha - Muitos cientistas são chamados de pessimistas quando reclamam da estrutura da universidade pública brasileira, que concentra as pesquisas. Como explicar que um sistema tão criticado tenha sido capaz de desenvolver um projeto como o genoma?
Ferreira -
Fazer genoma não é ciência, é meia ciência. É o desenvolvimento de uma técnica que não requer nenhuma hipótese. Desenvolver é resolver problemas. Se o objetivo dessa rede [financiada pela Fapesp para sequenciar o genoma da bactéria causadora da praga do amarelinho, que ataca laranjas" era resolver o problema do amarelinho, essa rede falhou.
Exemplificando, é como se uma fábrica, para resolver o problema de um indivíduo que não consegue entrar em casa porque perdeu a chave, produzisse 3,8 milhões de chaves diferentes e entregasse a ele como solução para o problema. Você tem de fazer o oposto: descobrir o problema e procurar o gene que o causa. Será que é preciso decifrar o genoma de tudo para resolver um problema? Essa é a falácia da direção da Fapesp. Isso não quer dizer que o projeto não tenha sido importante, já que alguns setores puderam aproveitar muito da experiência e do desenvolvimento de softwares da área. Mas a visão da bola de neve que isso está tendo é problemática. Quando isso vai terminar?


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