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Mutação cria explosão de câncer raro no Brasil
Portadores podem ser descendentes de
tropeiro que viajou pelo Sul no século 18
Frequência da síndrome no
Sul e Sudeste é 16 vezes
maior do que no resto da
população; troca de "letra"
em um gene é a causa
REINALDO JOSÉ LOPES
DA REPORTAGEM LOCAL
Famílias do Sul e do Sudeste
do Brasil sofrem há gerações
com uma forma tão agressiva
de câncer que alguns dos afetados chegam a se referir à doença como uma maldição hereditária. Um grupo de pesquisadores acaba de mostrar que o problema remonta, de fato, a um
ancestral comum -segundo
eles, provavelmente um tropeiro que deixou descendentes
país afora no século 18.
Por enquanto, contudo, a
principal implicação dos estudos é bem mais prática do que
entender a história populacional do Brasil Colônia.
"Certa parcela dos tumores
do Sul e do Sudeste, que nós
ainda não sabemos qual é, mas
que certamente não é desprezível, está ligada a essa mutação",
afirma a médica Maria Isabel
Waddington Achatz, do Hospital A.C. Camargo, em São Paulo. Achatz é coautora de um artigo na revista científica "Human Mutation" que detalha esse trabalho de detetive.
Caso especial
A alteração no DNA, típica de
algumas das famílias do Sul e
Sudeste, se encaixa num conjunto mais amplo de mutações
ligadas a formas severas de câncer. Esse grupo maior, conhecido como síndrome de Li-Fraumeni, se caracteriza por vários
tumores na mesma pessoa -de
mama, do cérebro e da glândula
suprarrenal, por exemplo- antes dos 45 anos de idade.
Os cânceres da síndrome de
Li-Fraumeni têm a mesma causa: mutações no trecho de DNA
que carrega a receita para a
produção da proteína p53. Essa
proteína, apelidada de "guardiã
do genoma", tem como principal função justamente impedir
os erros de cópia do DNA que
levam ao surgimento do câncer. Ela pode até forçar o "suicídio" de uma célula que passou
por mutações perigosas. Assim,
sem ela, o organismo perde
uma de suas principais defesas.
As alterações do gene da p53
que produzem a síndrome de
Li-Fraumeni são raras, atingindo uma a cada 5.000 pessoas.
Mas, quando começou a se interessar pelo tema, em 2001,
Achatz percebeu que o número
de pacientes era bem maior do
que o esperado. "Logo pensei
que estava acontecendo alguma coisa estranha aqui", diz.
Os últimos anos confirmaram essa suspeita. Ficou claro
que um tipo específico de mutação no gene da p53 era muito
comum em pessoas do Sul e do
Sudeste com Li-Fraumeni. O
último trabalho de Achatz e
seus colegas foi mais fundo:
analisou 12 famílias com essa
mutação, em princípio sem relação de parentesco entre si.
O resultado: todas carregavam o mesmo conjunto de 29
trocas de "letras" químicas no
gene da p53. "A chance de todas
essas trocas acontecerem juntas em famílias diferentes é baixíssima", diz Achatz. O melhor
jeito de explicar isso é imaginar
que todas herdaram o conjunto
típico de alterações de um ancestral comum distante.
Dados obtidos em Porto Alegre e Curitiba, com milhares de
pacientes, sugerem que a frequência verdadeira da mutação
nesses lugares é de uma em cada 300 pessoas. O mesmo pode
valer em São Paulo, afirma a
médica. "Quando colocamos
essas famílias no mapa, o padrão casa muito bem com as rotas seguidas pelos tropeiros
que carregavam mercadorias
entre o Sul e o Sudeste no século 18", argumenta ela.
A ideia é que o primeiro portador da mutação teria tido filhos com muitas mulheres ao
longo da rota das tropas. Esse
sucesso em deixar filhos, junto
com outros fatores (leia texto à
dir.), teria feito com que seus
descendentes estivessem presentes em número desproporcional na população de hoje.
Achatz diz que o próximo
passo para fortalecer a tese é
tentar estimar a data de origem
da mutação, com a ajuda da
equipe do geneticista Andrés
Ruiz-Linares, do University
College de Londres. Ela defende que valeria a pena testar a
mutação de maneira mais ampla na população, para enfrentar esse tipo de câncer com a
maior precocidade possível.
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