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CIÊNCIA
Mesmo antes de proposição de Malthus, humanidade discutia explosão populacional
A bomba demográfica
MOACYR SCLIAR
especial para a Folha
Muito antes do virtual artefato
atômico do dr. Enéas, uma outra
bomba ameaçava a humanidade: a
bomba populacional. Há 200 anos
ela era descrita pela primeira vez,
numa obra (em realidade, um
panfleto, ainda que muito bem escrito) chamada: "Um ensaio sobre o princípio da população tal
como afeta a futura melhora da
sociedade, com notas sobre as especulações de Mr. Godwin, M.
Condorcet e outros autores". O
autor, o reverendo Thomas Robert Malthus (1766-1834), sustentava a tese segundo a qual os meios
de subsistência crescem em proporção aritmética, enquanto a população cresce em proporção geométrica. Ou seja: abandonada a si
própria, a humanidade acabaria
consumindo os recursos do planeta.
Que Malthus tenha sido um reverendo é apenas uma das ironias
que iriam se suceder no longo debate que se seguiu. Pois não está
escrito na Bíblia, "crescei e multiplicai-vos"? Malthus, porém, preferiu ignorar o Livro Sagrado e se
concentrar no que via a seu redor.
E o que via ao redor não era nada
agradável. No começo da Revolução Industrial as cidades inglesas
cresciam espantosamente. E de
forma igualmente espantosa crescia a miséria. A fome e a doença
dizimavam populações: em Liverpool, a expectativa de vida não
passava de 35 anos. Números a
respeito, aliás, não faltavam. Já no
século anterior, William Petty e
John Graunt se haviam dedicado a
construir uma "aritmética política" dos fatos sociais, coletando
dados sobre população, produção, doenças e óbitos. Da Alemanha veio o termo para designar a
nova ciência: Statistik (de Staat,
Estado), a forma pela qual se pode
descrever matematicamente as
condições e as perspectivas da sociedade. O que influenciou Malthus: a primeira edição do livro era
retórica pura, mas a segunda tinha
números em abundância.
A solução maltusiana para o
crescimento populacional residia
na expressão "moral restraint".
A contenção moral significava
adiar a data do casamento e adotar
uma estrita abstinência sexual.
Pessimista, o autor não achava,
contudo, que tal fosse possível.
Obviamente a humanidade já
havia descoberto o problema demográfico antes de Malthus. E antes de Malthus surgiram soluções,
por vezes brutais. Em sociedades
antigas, e Esparta é um exemplo, o
infanticídio era uma prática comum e bem assim o aborto - o
juramento de Hipócrates proíbe
expressamente o uso de pessário
abortivo. À época de Malthus o
"condom" já era conhecido: os
oficiais usavam-no decorado com
as cores de seus regimentos. O que
não havia, porém, era uma política demográfica, nem mesmo um
ativismo demográfico.
Papel importante desempenharia nessa área Margaret Sanger
(1879-1966). Americana, Sanger
era filha de uma irlandesa que engravidou 18 vezes e teve 11 filhos.
Uma situação que, como parteira,
via se repetir nos bairros pobres de
Nova York. Diferente de Malthus,
Margaret Sanger não estava preocupada com proporções aritméticas ou geométricas, impressionava-a sobretudo o sofrimento das
mulheres, o seu calvário reprodutivo. As classes altas tinham acesso
ao que era chamado eufemisticamente de "produtos franceses"
-preservativos, diafragmas, geléias espermicidas-, mas às mulheres pobres sequer chegava informação sobre métodos contraceptivos: era proibido até enviar
material sobre o tema pelo correio. Sanger então lançou (1914) o
seu próprio jornal, "The Woman
Rebel", advogando o controle da
natalidade. Foi indiciada judicialmente por "promover a obscenidade". O que não a deteve: em
1916 abriu, no Brooklyn, a primeira clínica de planejamento familiar dos Estados Unidos. Foi presa,
mas cinco anos depois fundava a
Liga Americana de Controle da
Natalidade, precursora da IPPF,
International Planned Parenthood
Federation (Federação Internacional de Planejamento Familiar). A
dimensão da prole tornava-se uma
questão política.
E uma questão política incendiária, à medida que métodos mais
eficazes de contracepção surgiam.
Dificilmente haverá área de maior
controvérsia, e sobretudo de
maior confusão ideológica. Havia
até distinções semânticas, "controle da natalidade" traduzia uma
atitude drástica, coercitiva, enquanto "planejamento familiar"
partia da educação e do fornecimento de meios contraceptivos. O
debate acabou tendo como foco a
saúde pública - cuja prioridade
clássica era salvar vidas, e principalmente vidas infantis. Era como
se os controlistas, como vieram a
ser conhecidos os adeptos do controle da natalidade, dissessem:
"vocês estão colaborando para
encher o mundo de gente, agora
façam alguma coisa para evitar a
catástrofe demográfica".
Um raciocínio que estava longe
de convencer a todos. Tomem o
Brasil dos anos 70, época de grandes debates sobre o tema. A Igreja,
fiel à mensagem bíblica, era contra
programas de controle da natalidade; admitia no máximo os
meios naturais, que consistem em
evitar o coito no período fértil. E a
Igreja tinha aliados inesperados:
militares, que viam na expansão
demográfica uma forma de ocupar
os vazios do país e, portanto, de
garantir a segurança nacional contra interesses estrangeiros (a Amazônia era frequentemente mencionada como objeto dessa cobiça), e
a esquerda, que via no planejamento familiar uma conspiração
americana: a IPPF, muito ativa no
cenário internacional, era financiada sobretudo com verbas dos
Estados Unidos. Contudo, o país
onde o controle da natalidade era
exercido (e ainda é) de forma mais
compulsória era a China comunista. E não terminariam aí as surpresas. Na Conferência Internacional
de População, realizada em Bucareste (1974), foi proclamado o direito de famílias e pessoas para decidir a dimensão da prole e o espaçamento gestacional; mas, na
Conferência da Cidade do México
(1984), a ênfase -e por pressão da
representação norte-americana-
foi colocada na sobrevivência de
crianças, o que, de certa forma, jogava água fria na fogueira controlista. Assim o governo Reagan puxava o tapete da IPPF. Conservadorismo republicano? Aproximação com a Igreja? A pergunta ficou
sem resposta clara.
Aos poucos, uma nova realidade
foi se definindo: havia uma queda
real da natalidade no mundo. Nos
países mais ricos, a coisa tornou-se preocupante, a ponto de
governos terem de adotar medidas
de incentivo às famílias para que
crescessem. No Brasil o censo demográfico também mostrou que o
ritmo de crescimento populacional vem diminuindo. Em parte isso se deve à esterilização -a cesárea, praticada abundantemente no
país, que não raro se acompanha
da ligadura das trompas-, mas
muitas mulheres passaram a recorrer, espontaneamente ou não,
à pílula, método bastante eficaz
(quando não é feita de farinha,
claro).
Duzentos anos depois da publicação do "Ensaio sobre a população", verifica-se que o pesadelo
malthusiano não se realizou. Também não se transformou num sonho dourado, mas sonhos dourados, no imprevisível mundo dos
capitais voláteis, dificilmente se
tornam realidade.
Moacyr Scliar é médico e escritor, autor de "A
Paixão Transformada: História da Medicina na
Literatura".
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