São Paulo, domingo, 15 de novembro de 1998

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CIÊNCIA
Mesmo antes de proposição de Malthus, humanidade discutia explosão populacional
A bomba demográfica

MOACYR SCLIAR
especial para a Folha

Muito antes do virtual artefato atômico do dr. Enéas, uma outra bomba ameaçava a humanidade: a bomba populacional. Há 200 anos ela era descrita pela primeira vez, numa obra (em realidade, um panfleto, ainda que muito bem escrito) chamada: "Um ensaio sobre o princípio da população tal como afeta a futura melhora da sociedade, com notas sobre as especulações de Mr. Godwin, M. Condorcet e outros autores". O autor, o reverendo Thomas Robert Malthus (1766-1834), sustentava a tese segundo a qual os meios de subsistência crescem em proporção aritmética, enquanto a população cresce em proporção geométrica. Ou seja: abandonada a si própria, a humanidade acabaria consumindo os recursos do planeta.
Que Malthus tenha sido um reverendo é apenas uma das ironias que iriam se suceder no longo debate que se seguiu. Pois não está escrito na Bíblia, "crescei e multiplicai-vos"? Malthus, porém, preferiu ignorar o Livro Sagrado e se concentrar no que via a seu redor. E o que via ao redor não era nada agradável. No começo da Revolução Industrial as cidades inglesas cresciam espantosamente. E de forma igualmente espantosa crescia a miséria. A fome e a doença dizimavam populações: em Liverpool, a expectativa de vida não passava de 35 anos. Números a respeito, aliás, não faltavam. Já no século anterior, William Petty e John Graunt se haviam dedicado a construir uma "aritmética política" dos fatos sociais, coletando dados sobre população, produção, doenças e óbitos. Da Alemanha veio o termo para designar a nova ciência: Statistik (de Staat, Estado), a forma pela qual se pode descrever matematicamente as condições e as perspectivas da sociedade. O que influenciou Malthus: a primeira edição do livro era retórica pura, mas a segunda tinha números em abundância.
A solução maltusiana para o crescimento populacional residia na expressão "moral restraint". A contenção moral significava adiar a data do casamento e adotar uma estrita abstinência sexual. Pessimista, o autor não achava, contudo, que tal fosse possível.
Obviamente a humanidade já havia descoberto o problema demográfico antes de Malthus. E antes de Malthus surgiram soluções, por vezes brutais. Em sociedades antigas, e Esparta é um exemplo, o infanticídio era uma prática comum e bem assim o aborto - o juramento de Hipócrates proíbe expressamente o uso de pessário abortivo. À época de Malthus o "condom" já era conhecido: os oficiais usavam-no decorado com as cores de seus regimentos. O que não havia, porém, era uma política demográfica, nem mesmo um ativismo demográfico.
Papel importante desempenharia nessa área Margaret Sanger (1879-1966). Americana, Sanger era filha de uma irlandesa que engravidou 18 vezes e teve 11 filhos. Uma situação que, como parteira, via se repetir nos bairros pobres de Nova York. Diferente de Malthus, Margaret Sanger não estava preocupada com proporções aritméticas ou geométricas, impressionava-a sobretudo o sofrimento das mulheres, o seu calvário reprodutivo. As classes altas tinham acesso ao que era chamado eufemisticamente de "produtos franceses" -preservativos, diafragmas, geléias espermicidas-, mas às mulheres pobres sequer chegava informação sobre métodos contraceptivos: era proibido até enviar material sobre o tema pelo correio. Sanger então lançou (1914) o seu próprio jornal, "The Woman Rebel", advogando o controle da natalidade. Foi indiciada judicialmente por "promover a obscenidade". O que não a deteve: em 1916 abriu, no Brooklyn, a primeira clínica de planejamento familiar dos Estados Unidos. Foi presa, mas cinco anos depois fundava a Liga Americana de Controle da Natalidade, precursora da IPPF, International Planned Parenthood Federation (Federação Internacional de Planejamento Familiar). A dimensão da prole tornava-se uma questão política.
E uma questão política incendiária, à medida que métodos mais eficazes de contracepção surgiam. Dificilmente haverá área de maior controvérsia, e sobretudo de maior confusão ideológica. Havia até distinções semânticas, "controle da natalidade" traduzia uma atitude drástica, coercitiva, enquanto "planejamento familiar" partia da educação e do fornecimento de meios contraceptivos. O debate acabou tendo como foco a saúde pública - cuja prioridade clássica era salvar vidas, e principalmente vidas infantis. Era como se os controlistas, como vieram a ser conhecidos os adeptos do controle da natalidade, dissessem: "vocês estão colaborando para encher o mundo de gente, agora façam alguma coisa para evitar a catástrofe demográfica".
Um raciocínio que estava longe de convencer a todos. Tomem o Brasil dos anos 70, época de grandes debates sobre o tema. A Igreja, fiel à mensagem bíblica, era contra programas de controle da natalidade; admitia no máximo os meios naturais, que consistem em evitar o coito no período fértil. E a Igreja tinha aliados inesperados: militares, que viam na expansão demográfica uma forma de ocupar os vazios do país e, portanto, de garantir a segurança nacional contra interesses estrangeiros (a Amazônia era frequentemente mencionada como objeto dessa cobiça), e a esquerda, que via no planejamento familiar uma conspiração americana: a IPPF, muito ativa no cenário internacional, era financiada sobretudo com verbas dos Estados Unidos. Contudo, o país onde o controle da natalidade era exercido (e ainda é) de forma mais compulsória era a China comunista. E não terminariam aí as surpresas. Na Conferência Internacional de População, realizada em Bucareste (1974), foi proclamado o direito de famílias e pessoas para decidir a dimensão da prole e o espaçamento gestacional; mas, na Conferência da Cidade do México (1984), a ênfase -e por pressão da representação norte-americana- foi colocada na sobrevivência de crianças, o que, de certa forma, jogava água fria na fogueira controlista. Assim o governo Reagan puxava o tapete da IPPF. Conservadorismo republicano? Aproximação com a Igreja? A pergunta ficou sem resposta clara.
Aos poucos, uma nova realidade foi se definindo: havia uma queda real da natalidade no mundo. Nos países mais ricos, a coisa tornou-se preocupante, a ponto de governos terem de adotar medidas de incentivo às famílias para que crescessem. No Brasil o censo demográfico também mostrou que o ritmo de crescimento populacional vem diminuindo. Em parte isso se deve à esterilização -a cesárea, praticada abundantemente no país, que não raro se acompanha da ligadura das trompas-, mas muitas mulheres passaram a recorrer, espontaneamente ou não, à pílula, método bastante eficaz (quando não é feita de farinha, claro).
Duzentos anos depois da publicação do "Ensaio sobre a população", verifica-se que o pesadelo malthusiano não se realizou. Também não se transformou num sonho dourado, mas sonhos dourados, no imprevisível mundo dos capitais voláteis, dificilmente se tornam realidade.


Moacyr Scliar é médico e escritor, autor de "A Paixão Transformada: História da Medicina na Literatura".



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