São Paulo, domingo, 16 de abril de 2006

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+ ciência

Aquecimento global pode bater desmatamento como principal causador de extinções

Ponto quente e crítico

Caio Guatelli - 25.set.2005/Folha Imagem
Árvores queimadas por incêndio florestal que atingiu o Acre em 2005, o maior dos últimos tempos


REINALDO JOSÉ LOPES
DA REPORTAGEM LOCAL

A sucessão perversa de ciclos econômicos e especulação imobiliária conseguiu reduzir a mata atlântica a 7% de sua área original desde que os portugueses aportaram no sul da Bahia, em 1500. Já seria ruim o bastante se nenhum dano adicional acontecesse. Agora, imagine que, sem mais nenhuma ação humana direta, o ecossistema que já dominou o litoral do Brasil perdesse entre 20% e 36% da área que lhe restou. Um mero cenário de pesadelo?
Não de acordo com uma equipe internacional de pesquisadores, que publicou na semana passada uma das primeiras avaliações do impacto que o aquecimento global teria sobre a diversidade da vida na Terra durante os próximos cem anos. Eles centraram a análise, que está na última edição da revista científica "Conservation Biology", nas regiões naturais mais ricas em espécies e mais ameaçadas do mundo, conhecidas pelos biólogos como "hotspots".
Somados, os 25 "hotspots" estudados são o lar de 44% das plantas e de 35% dos vertebrados terrestres do globo, embora ocupem só 1,4% da superfície planetária. Além disso, todos já perderam pelo menos 70% de sua área original.
"Queríamos mostrar que o aquecimento global não é apenas um problema para ursos polares", declarou Lee Hannah, do Centro de Ciência Aplicada à Biodiversidade da ONG Conservação Internacional, em Washington. Hannah é um dos coordenadores do trabalho, ao lado de Jay R. Malcolm, da Universidade de Toronto, no Canadá. De fato, embora ursos polares e outros bichos árticos estejam com a corda no pescoço, é nos "hotspots" -além da mata atlântica, o Brasil abriga outro, o cerrado- que as alterações climáticas devem mandar mais espécies para o registro fóssil, por uma questão aritmética: eles contêm o maior número de espécies.
Os resultados da análise mostram que ainda há muito que os cientistas não sabem a respeito dos possíveis impactos de um planeta mais quente sobre os seres vivos, mas já acendem pelo menos o sinal amarelo -se não o vermelho. Em alguns casos, os "hotspots" chegariam a perder mais de 40% de suas espécies endêmicas, ou seja, que só existem neles e em nenhum outro lugar do mundo. E o aquecimento global poderia tomar o lugar do desmatamento como a principal ameaça à própria existência desses ecossistemas.

Modelos e padrões
O grande problema de qualquer exercício de futurologia é, claro, que parâmetros estabelecer para o que vai acontecer daqui a décadas. Como base para suas simulações, Hannah e seus colegas decidiram usar não um aumento de temperatura mas o crescimento na quantidade de dióxido de carbono na atmosfera.
Esse composto é o principal gás estufa (responsável por reter o calor na superfície da Terra), e eles assumem que, daqui a cem anos, a sua concentração será mais ou menos o dobro da que existia antes da Revolução Industrial. Foi a partir daí que a queima de combustíveis fósseis ligada à industrialização iniciou o processo de aquecimento global causado pela ação humana.
Essa decisão era até fácil de tomar perto de outros parâmetros da simulação, bem mais complicados. Diversos modelos de computador prevêem de maneira aproximada como os diferentes tipos de vegetação do mundo reagiriam a um planeta com mais dióxido de carbono e portanto mais quente. Como o gás é uma das matérias-primas da fotossíntese, o processo pelo qual as plantas constroem sua própria biomassa, ele tem um impacto direto no crescimento da vegetação. Algumas das mudanças previstas envolvem, por exemplo, um avanço das gramíneas, o que poderia transformar boa parte da Amazônia em algo mais parecido com o cerrado.
Resta saber como as espécies de cada "hotspot" reagiriam às alterações. Os pesquisadores testaram várias hipóteses. Cada região dessas poderia ser composta de uma mistura de diferentes tipos de vegetação: se um tipo encolhe mas o outro cresce, será que as espécies perderiam habitat? Isso dependeria de quanto elas são "apegadas" a um só tipo de vegetação, e também ao chamado envelope climático. "Esse é o nome que damos às condições do clima que favorecem a existência de uma espécie", explica o biólogo britânico Chris Thomas, da Universidade de York, que não participou do estudo e também investiga a interação entre aquecimento global e extinções.

Trouxinha nas costas
Outro fator relevante é a capacidade migratória das espécies sob risco: será que elas conseguiriam fugir para as áreas favoráveis que ainda existiriam após as mudanças? Os pesquisadores simularam ambas as possibilidades, a de "migração perfeita" (em que a espécie sempre consegue achar um cantinho dentro do seu antigo "hotspot") e a de "migração zero" -auto-explicativa.
Após realizar simulações que levavam em conta todos esses critérios e incertezas, os pesquisadores chegaram a pelo menos uma boa notícia. No geral, os tais "hotspots" não pareceram muito mais vulneráveis à perda de espécies que as demais áreas do planeta. Em média, cada uma das 25 áreas perderia cerca de 11% de suas espécies endêmicas daqui a cerca de um século.
Algumas regiões, porém, mostraram-se especialmente vulneráveis, como a própria mata atlântica (quando se considera a diminuição de sua área original), ou o Caribe, a bacia do Mediterrâneo, o sudoeste da Austrália e os Andes tropicais. Em cada um desses lugares, a perda de vegetais chega a 2.000 espécies, sem falar nas centenas de formas de vertebrados terrestres.

Mais que o desmatamento
O cenário mais pessimista é nada menos que assombroso: Hannah e colegas calculam que ele geraria a perda de 56 mil espécies de planta e 3.700 vertebrados, quando os "hotspots" são somados. Nesse regime, essas regiões experimentariam uma perda anual de 0,26% de suas espécies, enquanto a extinção causada pela taxa atual de desmatamento não ultrapassaria 0,08%, dizem os pesquisadores.
Nem é preciso dizer que uma montanha de incertezas ainda resta. A hecatombe pode ser muito menor do que indicam as previsões mais sombrias se -e esse é um enorme "se"- as espécies animais e vegetais se mostrarem razoavelmente adaptáveis e tolerantes às mudanças que as esperam neste século. "As espécies vão responder de forma individualista às mudanças, como espécies, e não como ecossistemas", escrevem os autores. Alguém aí está disposto a arriscar?


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