São Paulo, domingo, 16 de abril de 2006

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Micro/Macro

Sobre os ombros de gigantes

MARCELO GLEISER
COLUNISTA DA FOLHA

Na mitologia grega, Atlas era um do titã que se revoltou contra Zeus. Sua punição? Sustentar os céus por toda a eternidade. Imagens do gigante equilibrando a Terra sobre os ombros são bastante comuns. A partir do século 16, o nome virou um adjetivo para alguém forçado a suportar um peso enorme, físico ou emocional. E também é familiar da palavra atleta. O nome está sendo usado novamente, desta vez bem longe da mitologia. Atlas é o gigantesco detector de partículas que está sendo construído no Centro Europeu de Física de Partículas, conhecido como Cern.


É uma ironia que máquinas tão gigantescas sejam necessárias para estudarmos o que de menor existe no cosmo


Convém começar discutindo o que é um detector de partículas. Como diz o nome, o detector detecta. No caso, detecta as partículas de matéria criadas em colisões extremamente violentas que ocorrem em máquinas chamadas aceleradores de partículas. Duas bolas de tênis, atiradas uma contra a outra a velocidades normais, sofrem uma colisão pouco interessante: após colidirem, desviarão suas trajetórias. O "detector" aqui pode ser uma câmera fotográfica com um disparo rápido que nos permita acompanhar as bolas. Os aceleradores de partículas também provocam colisões. Só que essas colisões envolvem elétrons, prótons e outras partículas de matéria chocando-se a velocidades muito próximas à velocidade da luz. Em máquinas como o LHC (do inglês Large Hadron Collider, grande colisor de hádrons) do Cern, as distâncias estudadas são milhões de vezes menores do que o raio de um núcleo atômico. A função do detector é recriar os detalhes da colisão de modo a permitir que físicos e engenheiros possam analisar quais partículas estavam presentes. Quanto mais sensível o detector, mais precisa a análise. Um detector com baixa precisão é como uma foto fora de foco: vários detalhes preciosos podem ser perdidos.
Esses detalhes são as partículas que constituem os tijolos fundamentais de toda a matéria que existe no Universo. Desde que Tales, o primeiro filósofo grego, perguntou em torno de 650 a.C. do que tudo é feito, a questão da composição material do mundo ocupa um lugar privilegiado na história do pensamento ocidental.
Os físicos de partículas de hoje continuam respondendo à mesma questão, mantendo a tradição viva. O que muda é a resposta. A pergunta (e a curiosidade) permanece essencialmente a mesma. Cada época formula sua resposta e, com isso, sua cultura.
Hoje temos o Atlas, um gigante de sete mil toneladas, do tamanho de meio campo de futebol. O LHC, a casa do Atlas, um túnel a 100 m de profundidade com 27 km de circunferência, fará colidir prótons contra prótons na esperança de resolver muitas questões relativas às partículas elementares. Dentre elas, a origem da massa, um dos grandes mistérios da física. O papel do Atlas, que entra em funcionamento em meados de 2007, será fundamental: na forma de um cilindro oco (do tamanho de um prédio de seis andares), o detector será capaz de seguir as várias partículas que surgem do ponto de colisão em seu centro, obtendo suas massas, carga elétrica e energia. A criação dessas partículas é conseqüência direta da famosa fórmula E=mc2: a enorme energia dos prótons é convertida em um chuveiro de outras partículas. É por isso que aceleradores têm de ser tão grandes: quanto maiores, maior a energia da colisão. Já os detectores são grandes para aumentar sua precisão. É uma dessas ironias da ciência, que máquinas tão gigantescas sejam necessárias para estudarmos o que de menor existe no cosmo.

Marcelo Gleiser é professor de física teórica do Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "O Fim da Terra e do Céu"


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