São Paulo, domingo, 16 de abril de 2006

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Ciência em Dia

O exemplo TGN1412

MARCELO LEITE
COLUNISTA DA FOLHA

Há pouco mais de um mês, o remédio experimental TGN1412 despachou 6 de 8 jovens britânicos de boa saúde direto para a UTI do hospital Northwick Park, Londres, onde quase morreram. As cobaias humanas, recrutadas ao peso de 2.330 libras esterlinas, enfrentaram falência generalizada de órgãos. O episódio é exemplar de como se faz muita da ciência, hoje: às cegas.
Formalmente, nada havia de errado com o teste clínico de fase 1 do TGN1412. Pagar meia dúzia de voluntários para testar se medicamentos novos são tóxicos é legal na maioria dos países.
A empresa alemã de biotecnologia que criou o TGN1412, TeGenero, subcontratou a organização americana Parexel para conduzir o teste no Reino Unido, sob a supervisão da MHRA, órgão britânico que regulamenta remédios, e do comitê de ética do hospital. A Parexel tem escritórios em 27 países, inclusive no Brasil.


Um compêndio de modernidade: "startup " de alta tecnologia, terceirização, globalização. E precarização


Parece um compêndio de modernidade: "startup" de alta tecnologia, sinergia de competências específicas, terceirização, agência reguladora, comitês locais autônomos, globalização. E precarização.
O medicamento em teste é da classe dos anticorpos monoclonais, substâncias que ativam células-T do sistema imune (de defesa) do corpo. Dezenas já tiveram testes autorizados em humanos. O TGN1412 é um membro especial da classe, pois consegue mobilizar uma gama ampla de células-T. Foi desenvolvido para tratar esclerose múltipla, artrite e leucemia.
Como manda o figurino, tinha sido testado antes em animais -coelhos e macacos. Não houve reações significativas. O ensaio prosseguiu, com as devidas autorizações e doses tão baixas quanto 1/500 do que fora dado aos bichos. Mas saiu tudo errado. Ou talvez tenha começado tudo errado, como sugere o escrutínio dos procedimentos desde então.
O teste com os voluntários foi realizado sucessivamente, com intervalos mais curtos do que seria prudente. Em duas horas, todos já tinham recebido a droga (ou placebo, no caso de 2 das 8 cobaias). Embora estivessem em quartos vizinhos, não houve tempo, ou decisão, para que as imediatas reações violentas nos primeiros pacientes levassem à interrupção do teste.
O formulário e os documentos usados para obter o consentimento informado dos jovens também sofreu críticas. Não informava que o remédio tinha por alvo o sistema imune, ou quantos participantes receberiam o placebo. Dava uma descrição benévola de efeitos colaterais. E os voluntários tinham de concordar em nada receber se desistissem em qualquer ponto do teste.
Em resumo, era uma armadilha para atrair jovens necessitados de dinheiro, usando como isca um teste que parecia trivial. Na realidade, tratava-se de uma droga poderosa, que altera o sistema imune e, por ser potente e mirar nas defesas, sempre envolveria um risco alto, ou difícil de avaliar.
Valores como respeito, compaixão e solidariedade parecem ter pesado muito menos, nesse estudo, que a busca por prioridade, prestígio, patentes e lucros. Será esse um exemplo da pesquisa biomédica do futuro?

Marcelo Leite é doutor em Ciências Sociais pela Unicamp, autor dos livros paradidáticos"Amazônia, Terra com Futuro" e "Meio Ambiente e Sociedade" (Editora Ática) e responsável pelo blog Ciência em Dia (cienciaemdia.zip.net). E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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