São Paulo, domingo, 17 de junho de 2001

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O novo sentido do tato

Stock Photos


Sistema de aplicação de pontos de pressão na pele transmite informações como "céu" e "chão" para pilotos desorientados e, no futuro, poderá ajudar a substituir outros sentidos deficientes, como audição ou visão

Mark Schrope
da "New Scientist"

Para Angus Rupert, a inspiração veio quando ele cedeu ao impulso de praticar "skydiving" nu. "Enquanto saltava, percebi que há muita informação que pode ser transmitida por meio do tato", afirmou. Como resultado, Rupert, cirurgião de vôo da Nasa (agência espacial norte-americana) e da Marinha dos EUA, produziu o primeiro macacão táctil de pilotagem. Ele espera que o equipamento ajude a evitar os inúmeros acidentes causados por pilotos de avião em meio a surtos de desorientação. É uma inovação espantosa. Simplesmente se acopla o macacão ao cockpit e pode-se pilotar um caça a jato com os olhos fechados.
O macacão é um entre o número cada vez maior de aplicativos que estão sendo desenvolvidos para explorar a reação ao tato. Pesquisadores demonstraram que a linha direta que liga pele e cérebro -a que permite tentar matar um mosquito sugando sangue do braço com um golpe, sem parar para pensar na mira- pode abrir uma série de possibilidades. Além de salvar pilotos e suas aeronaves, a reação instintiva ao toque poderia impedir que as pessoas batessem carros, além de orientá-las aos seus destinos. Um dia, a pele pode oferecer um substituto para sentidos defeituosos, ajudando cegos a se orientar e permitindo que os surdos ouçam.
Compreender o potencial da pele já exigiu quase três décadas de pesquisa. A primeira indicação de que o órgão tinha tanto a a oferecer surgiu em 1972, quando dois psicólogos da Universidade Princeton, em Nova Jersey (EUA), descobriram por acaso que, assim como a visão é enganada por ilusões de óptica, o tato também poderia ser ludibriado. E de uma maneira muito semelhante.
Frank Geldard e Carl Sherrick estavam tentando descobrir como o cérebro interpreta a sensação de alguma coisa dando toques na pele. Eles construíram uma braçadeira que continha três vibradores feitos de alto-falantes de fones de ouvido, dispostos pelo antebraço em intervalos regulares. Os vibradores estavam conectados a um gerador de sinais, que tinha por objetivo mandar sinais pulsantes a cada um deles. Mas o circuito havia sido montado incorretamente. Em lugar de um simples pulso em cada vibrador, Geldard recebia cinco pequenos e rápidos golpes no punho, mais cinco na metade do antebraço e outros cinco na altura do cotovelo. Mas ele sentia algo completamente diferente. Geldard percebia golpes em pontos localizados entre os vibradores e descreveu a sensação como sendo semelhante a um microcoelho subindo braço acima aos pulos. A ilusão se tornou conhecida como "coelho cutâneo". Geldard e Sherrick passaram anos explorando esse e outros aspectos do toque. Mas, no geral, permaneceram praticamente sozinhos nesse campo, e o progresso do trabalho tem sido lento. No mundo todo, apenas cerca de cem pessoas se dedicam a pesquisar o tato, em comparação aos milhares de cientistas que estudam a visão e a audição. Roger Cholewiack, que agora comanda o laboratório de Geldard e Sherrick em Princeton, espera que o macacão de vôo táctil -e as demais aplicações do tato que vêm emergindo- mude essa situação. Nos últimos cinco anos, Cholewiak vem ajudando Rupert no desenvolvimento e nos testes com o macacão na Estação Aérea Naval de Pensacola, na Flórida. Os conhecimentos especializados de Cholewiak ajudaram Rupert a compreender como os vibradores -também conhecidos como "tatores"- deveriam ser dispostos e disparados para obter efeito máximo. Inicialmente, eles fizeram testes com alto-falantes de fones de ouvido e motores de pager, mas o protótipo do macacão de vôo agora usa tatores pneumáticos, impulsionados por um pulso de ar que passa por um tubo fino. Eles geram vibração mais poderosa do que a dos vibradores elétricos e são menos perigosos do que conectar um piloto a uma fonte de eletricidade. São também muito mais leves -um fator crucial em aviação. O macacão dispõe de 32 tatores pneumáticos, cada um dos quais com cerca de um centímetro e meio de diâmetro e alguns milímetros de espessura. Eles ficam dispostos em torno do torso, com intervalos de cerca de dois centímetros entre cada um. De acordo com Cholewiak, essa é a menor distância a que podem ser instalados e ainda manter a utilidade. "A pele não trabalha bem com vibrações em alta densidade", explica. Os tatores são acionados por um pequeno motor que bombeia os jatos de ar de acordo com determinações eletrônicas dos instrumentos da cabine do piloto. Dessa maneira, o piloto pode receber informação tátil sobre a altitude, inclinação, atitude e velocidade relativa do aparelho. Mas a principal função do macacão é ajudar a distinguir entre as sensações de "em cima" e "embaixo". "A maioria dos pilotos mortos na guerra do Golfo, durante a operação Tempestade no Deserto, morreu por não saber qual era o lado de cima", afirma Cholewiak. Cerca de 30% das colisões aéreas civis -incluindo, acreditam investigadores, a que matou John Kennedy Jr.- foram atribuídas à desorientação espacial. Saber onde está o chão envolve informações complexas e, o mais importante, contínuas, recebidas por nossos sentidos. Normalmente, usamos nossos olhos e nosso sistema vestibular -os órgãos cheios de fluido em nosso ouvido interno, que passam as sensações de equilíbrio e orientação. Mas, em certas situações, essas informações podem ser enganosas. Os pilotos podem se convencer de que estão com o aparelho nivelado quando, na verdade, estão mergulhando em direção ao chão ou -de forma ainda mais enganosa- ao mar. Evidentemente, os aviões modernos dispõem de instrumentos que oferecem informações quanto à orientação. Mas lê-los requer atenção, algo escasso quando o piloto perde controle devido a uma turbulência súbita ou caso esteja voando a baixa altitude sobre terreno irregular, em manobras evasivas contra o fogo inimigo. Não é nem sequer preciso que se trate de uma situação desgastante para que as coisas dêem errado. Manter um helicóptero em vôo estacionário, por exemplo, é uma tarefa inerentemente difícil. Movimentos imperceptíveis que escapam à atenção dos olhos, do sistema vestibular e dos instrumentos da cabine podem acabar causando um desastre. Quando o então presidente norte-americano Jimmy Carter enviou uma missão para resgatar reféns norte-americanos no Irã em 1980, um helicóptero em vôo estacionário causou o fracasso da missão -e possivelmente torpedeou as chances de Carter quanto a conseguir um segundo mandato presidencial- ao lenta e inadvertidamente deslizar para o lado, atingindo um avião transportador de tropas. Entretanto, usando um traje táctil de vôo, até mesmo alguém sem experiência de pilotagem poderia manter um helicóptero imóvel durante um vôo estacionário. Não há necessidade de interpretar informações de instrumentos do painel: responder corretamente aos pulsos e vibrações do macacão é algo que acontece naturalmente. "Tentamos tornar o sistema táctil o mais intuitivo possível", afirma Cholewiak. Assim, quando o helicóptero se inclina para a frente, fortes vibrações na frente do traje praticamente forçam o piloto a corrigir a posição. Derivar para um lado causa vibração na lateral do macacão. Se o aparelho estiver se inclinando lateralmente para a direita, as vibrações se movem da cintura para a região da axila direita do traje. Se o nariz da aeronave estiver empinado demais, haverá vibrações na parte posterior do pescoço. A resposta instintiva a cada um desses estímulos é a correta: a reação automática é a de corrigir movimentos involuntários.

Arrepios na espinha
O sistema é tão eficiente na transmissão de informações geradas pelos instrumentos da cabine de pilotagem que permite que os pilotos militares voem vendados depois de apenas alguns minutos de treinamento. Eles podem até mesmo fazer "loopings", sabendo exatamente em que ponto do círculo nivelar -durante um "looping" executado para trás, o macacão tátil lhes causa um arrepio na espinha, que passa pelos ombros e desce pela frente do corpo, para mantê-los orientados. Os macacões também podem alertar os pilotos sobre a aproximação de inimigos: uma pressão sobre a área correta do corpo gera uma compreensão instintiva sobre a direção exata de aproximação de uma aeronave inimiga.
Richard Healing, diretor do Serviço de Segurança e Sobrevivência da Marinha dos Estados Unidos, está impressionando com a capacidade do macacão. "Minha impressão é que ele será uma ferramenta muito preciosa", diz. Se tudo correr bem, Healing acredita que, dentro de cinco anos, um macacão do tipo possa se tornar equipamento padrão para pilotos de alguns aviões.
Outras aplicações dos macacões tácteis estão sendo desenvolvidas. Mergulhadores militares estão testando uma versão do sistema que permitirá a orientação e a comunicação em mares muito escuros. E os trajes estão até chegando ao espaço. Hong Tan, pesquisadora da Universidade Perdue (Indiana, EUA) no ramo de engenharia, conduz uma equipe que já testou sistemas tácteis no chamado "cometa de vômito" da Nasa, um avião que voa em uma trajetória de arco para dar aos ocupantes a sensação de microgravidade durante 30 segundos. Um dia, Tan espera ter sistemas táteis incorporados aos macacões usados pelos astronautas da Nasa. Isso ajudaria a lidar com a desorientação sofrida por eles em suas caminhadas espaciais.


Empresas automobilísticas financiam estudos para a aplicação dos sensores táteis aos carros, onde, associados a um radar, poderiam alertar sobre uma batida iminente


Mas outro trabalho de Tan, iniciado no Media Lab (Laboratório de Mídia) do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), terá uma aplicação mais prosaica. As multinacionais automobilísticas Nissan e Honda estão ajudando a equipe que ela dirige na Universidade Perdue a desenvolver sistemas táteis para seus carros e caminhões. Os sistemas estariam ligados a aparelhos de radar de curto alcance e ofereceriam um alerta físico ao motorista quando algo se aproximasse demais do carro. Se uma criança aparecesse correndo na frente do carro, por exemplo, ou se o motorista, em alta velocidade, se aproximasse demais do carro da frente, o sistema propiciaria um forte toque no peito do motorista, proveniente de tatores instalados no cinto de segurança. Caso alguma coisa estivesse perto demais da lateral do carro, o alerta aconteceria daquele lado do corpo, talvez vindo de um tator instalado em um lado do cinto que atravessa o colo. Sistema semelhante advertiria caminhoneiros dando a ré às cegas de que estão prestes a bater em alguma coisa. A pesquisa de Tan demonstra que os tempos de reação podem cair à metade quando a informação tátil substitui o estímulo visual direto -uma melhora que poderia salvar vidas. Tan também usou o "coelho cutâneo" para tornar mais seguros os sistemas de navegação dos automóveis. Um conjunto de tatores -alto-falantes de "walkman" modificados- montados no encosto do banco pode criar a ilusão de uma linha que se move pelas costas do motorista, em qualquer direção, dizendo-lhes quando e para onde virar. Como o macacão de vôo tátil, o sistema pode ser usado sem treinamento: é completamente instintivo. "Não é preciso pensar sobre direita ou esquerda", explica Tan. "O sinal já está mapeado de acordo com o sistema de coordenadas do corpo."

Economia de equipamento
Usar o "coelho cutâneo" implica também menor necessidade de equipamento. No protótipo há nove tatores no encosto do banco, mas as pessoas que experimentam o sensor registram a sensação de um número de toques quatro vezes maior do que o aplicado. O coelho trabalha com uma redundância implícita. Se um dos tatores falha, os outros assumem a responsabilidade. A pesquisa de Tan pode até beneficiar pessoas que não dirigem. Ela está ligando um cinto táctil a um sistema GPS (sistema de posicionamento global, na sigla em inglês) de navegação por satélite e usando as vibrações do cinto para conduzir uma pessoa cega ao seu destino. O método poderia substituir sistemas de navegação que dependem de bipes ou de uma voz sintetizada, que podem ser perigosos ao ter o potencial de desviar a atenção do usuário de barulhos como o causado por carros se aproximando. Um sistema de vibração, além de tudo, também seria bem menos visível. Um objetivo mais distante da pesquisa táctil seria ajudar pessoas com problemas auditivos, especialmente os desenvolvidos na infância. Kimbrough Oller, da Universidade do Maine em Orono, acredita que o cérebro de uma criança pequena possa ser treinado e reorganizado de modo a receber sons pela pele. "O plano neurológico não é inato e fixado cedo na vida", afirma. Charlotte Reed, pesquisadora de fonologia e audição no MIT, acredita que a idéia de Oller poderia ser colocada em prática com um sistema relativamente simples, usando uns poucos tatores. Variar os tipos e texturas das vibrações -como mudar as frequências em um aparelho de som- poderia permitir que informação complexa fosse transmitida por um equipamento simples. Isso manteria baixo o custo do sistema de audição tátil, talvez tornando-o dezenas de milhares de dólares mais barato do que os implantes cocleares (na parte anterior do labirinto, sede do sistema vestibular).

Melodias de toques
Contudo, ninguém desenvolveu tatores tão versáteis até o momento, e o mercado para esse tipo de aparelho, que por enquanto é bastante limitado, não ajuda a acelerar as pesquisas. No entanto, o mais recente setor a aproveitar o potencial do toque poderá causar grande impacto na tecnologia tátil. Jan van Erp, um psicólogo experimental que trabalha no Instituto de Pesquisa de Fatores Humanos TNO, em Soesterberg, Holanda, quer desenvolver vibradores que criem "melodias" vibratórias em telefones celulares. Ele e sua equipe vêm executando testes para ver com que facilidade as pessoas reconhecem o ritmo de uma canção em forma táctil. Um dia, o telefone celular de uma pessoa pode ser programado para executar uma canção brega de amor em forma tátil quando seu amado ligar, e o ritmo sombrio da Marcha Fúnebre quando o telefonema vier do escritório. Stephen Furner, gerente-sênior de tecnologia na BtexaCT, perto de Ipswich, Inglaterra, está entusiasmado com as experiências de van Erp.
"Estou profundamente interessado", diz ele. "Acredito que ele desenvolveu uma excelente idéia". Furner prevê que telefones com opções tácteis podem chegar ao mercado dentro de cinco anos.
Talvez, àquela altura, as pessoas já estejam usando roupas inteligentes com tatores espalhados discretamente por todo o corpo. Assim, pode haver outra opção para programar os tons personalizados de um telefone tátil. A pessoa poderá programar o sistema de modo que telefonemas do patrão sejam representados por toques insistentes no ombro. Ou talvez preferirá reservar esse método à chamada da pessoa amada.

Mark Schrope, jornalista especializado em ciência, vive na Flórida (EUA)
Tradução de Paulo Migliacci


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